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Acordo Mercosul-UE deve baratear produtos, mas forçar eficiência e produtividade

No dia 28 de junho, os comitês negociadores do Mercosul e da União Europeia (UE) divulgaram em Bruxelas, capital da Bélgica, a conclusão de um ambicioso acordo comercial envolvendo os dois blocos econômicos. A espinha dorsal das novas regras é a redução imediata ou gradual de tarifas de importação entre os países europeus e sul-americanos — em muitos casos baixando os tributos a zero.

Em tese, a reorganização tarifária tornará mais baratos os produtos agropecuários e industriais abrigados sob o guarda-chuva do acordo.

Negociado ao longo de 20 anos e festejado por ambas as partes como “o maior acordo de livre comércio da história”, a aliança envolve números impressionantes:

Os 28 países da UE e os quatro do Mercosul somam um produto interno bruto (PIB) de US$ 20 trilhões, cerca de 25% da economia mundial
O mercado consumidor dos 32 países chega a 780 milhões de pessoas
O comércio entre os dois blocos passou de US$ 90 bilhões em 2018
A UE já é o maior investidor estrangeiro no Mercosul, com US$ 433 bilhões em 2017
Só no ano passado, empresas brasileiras exportaram quase US$ 20 bilhões para a UE

O PIB per capta dos europeus supera U$ 24 mil dólares
O texto final ainda não é público. Passa por revisões legais e traduções para cerca de 30 idiomas. Até o momento, foram divulgados apenas os pilares da parte comercial. Capítulos políticos e de cooperação internacional estão em fase final de negociações.

A política também será fundamental para que o acordo saia do papel e seja realidade no cotidiano de quase 800 milhões de europeus e sul-americanos. Isso porque, o texto final terá que ser analisado pelo Parlamento Europeu e pelos 32 parlamentos dos países envolvidos.

Portanto, uma cuidadosa concertação política terá que ser feita nos próximos anos para garantir a efetivação das novas regras. Os otimistas preveem a entrada em vigor do acordo em cerca de dois anos. Os pessimistas, em até quatro.

Dois meses após o entusiasmado anúncio em Bruxelas, o cenário político e diplomático já enfrenta sua primeira prova de fogo. E o Brasil é o centro da disputa. A conduta do país na questão ambiental diante do aumento das queimadas na Amazônia vem sofrendo críticas dos europeus, levando a questionamentos com relação ao acordo comercial, que amarra os países no cumprimento irrestrito das metas de conservação acertadas multilateralmente no Acordo de Paris sobre o clima.

O presidente francês, Emmanuel Macron, e o primeiro-ministro da Irlanda, Leo Varadkar, explicitaram, por ocasião do recente encontro do G7 (principal fórum dos países ricos) que votarão contra o acordo se o Brasil não cumprir as metas ambientais. Isso é um problema, porque a UE só efetiva acordos quando há unanimidade entre seus membros. O que modera as cobranças de Macron é que, no mesmo encontro do G7, alemães e ingleses rejeitaram a ideia de aplicar sanções ao Brasil pelas queimadas por meio da inviabilização do acordo de comércio, ainda que tenham ajudado a aprovar declarações fortes contra o país, no que tange à atual política ambiental.

Macron chegou a dizer que o presidente Jair Bolsonaro mentiu para ele durante a recente reunião do G20 (grupo formado palas 19 maiores economias do mundo mais a União Europeia), quando lhe garantiu que o Brasil estava firmemente compromissado com as metas ambientais. A reação do presidente brasileiro seguiu pelo Twitter: Bolsonaro lamentou o termo “mentiroso” e sugeriu que Macron é “vaidoso”, além de repudiar o que considera uma tentativa de retirar a soberania brasileira sobre a Amazônia.

Discordâncias políticas de caráter ideológico, mas que resvalam igualmente em soberania, também tensionam as relações internas sul-americanas: em agosto, Bolsonaro anunciou que, se o candidato peronista Alberto Fernandez e sua vice, a ex-presidente Cristina Kirchner, vencerem o pleito presidencial de outubro na Argentina, o Brasil estudaria rever sua posição no Mercosul.

O setor empresarial busca espantar os fantasmas políticos que assombram as regras que poderão dinamizar o comércio exterior. A ministra da Agricultura, Tereza Cristina, manifestou sua estranheza com a mistura entre queimadas e tarifas de exportação e importação. E a Federação das Indústrias do Estado de São Paulo (Fiesp) expressou sua preocupação e espanto com as ameaças ao acordo pactuado depois de um debate exaustivo de 20 anos.

Principais pontos
Segundo dados do Itamaraty, hoje 24% das exportações brasileiras para a UE estão livres de tarifas. Caso o acordo se efetive, esse percentual subirá para 95%, tanto para o Brasil como para os outros países do Mercosul.

E se forem incluídos nesse cálculo produtos que terão liberação parcial de tarifas — obedecendo a critérios de cota, preços de entrada e preferência — 99% das exportações para a UE serão desoneradas

O Mercosul, por sua vez, liberalizará 91% das importações da UE. A oferta da UE está dividida em cestas de desgravação tarifária de 0, 4, 7 e 10 anos, além dos casos de desgravação parcial. Em volume de comércio, 92% das importações do Mercosul terão as tarifas eliminadas em 10 anos.

Já as cestas do Mercosul preveem desgravações de 0, 4, 8, 10 e 15 anos (neste último caso, o setor automotivo), além dos casos de desgravação parcial. 72% da oferta será duty free (sem tarifa) em 10 anos.

— Os defensores de acordos como esse argumentam sobre os ganhos a médio e longo prazo, porque obrigam as partes a serem mais eficientes e competitivas. O problema, na verdade, está no custo do ajuste. Estes acordos condicionam todos os setores a investirem em qualidade, para não sucumbirem à concorrência. No que tange aos consumidores, eles ganham, pois passam a ter mais acesso a diferentes produtos, com melhores preços e qualidade — explicou o secretário-geral da Associação Latino-Americana de Integração (Aladi), o diplomata mexicano Alejandro de la Peña, em entrevista à Agência Senado.

Segundo Peña, o problema do Mercosul está principalmente no curto prazo, mais especificamente nos custos do ajuste:

— Precisamos compreender que isso é intrínseco a um acordo tão ambicioso. O que posso garantir, por minha longa experiência na diplomacia, é que as nações do Mercosul são relevantes e possuem negociadores de primeiro gabarito, que encaminharão um texto final conveniente. Conheço vários deles pessoalmente, e sei que buscarão de todas as formas amortizar e reduzir ao máximo possível os custos, espraiando-os a contextos temporais mais largos e normas diferenciadoras.

A agricultura ganha?
Um dos setores mais impactados pelo acordo é o agronegócio brasileiro. O governo lembra que a UE é o maior importador agrícola mundial, sendo o Brasil seu segundo maior fornecedor.

Só no ano passado, o país exportou US$ 14 bilhões para a UE, com destaque para ração animal (US$ 3,5 bilhões), café (US$ 2,3 bilhões), grãos e oleaginosas (US$ 2 bilhões), preparações alimentícias vegetais (US$ 1,3 bilhão) e carnes (US$ 989 milhões).

Na agricultura, o acordo prevê que a UE liberalizará 82% do volume de comércio, e concederá o status de “acesso preferencial” aos países do Mercosul.

Produtos agrícolas de grande interesse do Brasil terão as tarifas eliminadas, como café (em quatro anos), fumo manufaturado (transição em sete anos) e não-manufaturado (transição em quatro anos), peixes (a maioria imediatamente após a entrada em vigor do acordo) e óleos vegetais (desgravação imediata).

Já outros produtos estarão sujeitos a cotas: carne bovina, frango, açúcar, etanol, arroz, milho e cachaça.

Por outro lado, o Mercosul deverá liberar 96% do volume de comércio agrícola com a UE. Na desgravação total, estão azeite de oliva, bebidas, malte e outros.

Entre os produtos ofertados em cotas pelo Mercosul, estão queijos, leite em pó, fórmula infantil, vinhos, espumantes, alho e chocolates (veja gráfico).

Visões positivas
Em debate na Comissão de Agricultura da Câmara dos Deputados realizado em agosto, a assessora para Assuntos Internacionais da Confederação Nacional da Agricultura e Pecuária do Brasil (CNA), Lígia Dutra, elogiou o texto.

— Cabe agora a nós nos prepararmos visando à adaptação ao acordo. O Brasil precisa fazer o dever de casa: reduzir custos, melhorar a infraestrutura logística e, assim, aproveitar esta janela de oportunidades que se abre — recomendou.

Já durante debate realizado em julho deste ano na Comissão de Assuntos Econômicos do Senado (CAE), o secretário de Comércio Exterior do Ministério da Economia, Lucas Ferraz, garantiu que a efetivação do acordo trará ganhos expressivos ao agronegócio.

— A exportação de açúcar, hoje limitada a uma cota de 22 mil toneladas por ano, deverá ser aumentada em mais 180 mil toneladas. A exportação de etanol poderá crescer em mais 650 mil toneladas e a de frango, em 100% dos números atuais — projetou.

Ferraz também previu novos tempos para o agronegócio, com a possibilidade de importação de maquinário europeu, que poderá ajudar a melhorar a produção local.

Do mesmo modo, o senador Lasier Martins (Podemos-RS) fez uma avaliação positiva, em discurso no Plenário do Senado.

— O Rio Grande do Sul deverá se beneficiar, especialmente com a exportação de soja, frango, móveis, celulose e fumo. Só me preocupa muito o que vai ocorrer ao setor vinícola do estado — ressalvou, fazendo coro a manifestações de representantes do setor.

Lasier lembrou que cada garrafa de vinho produzida no Rio Grande do Sul paga 44% de impostos, o que complica a concorrência com os estrangeiros.

Perdas industriais
No comércio industrial, a UE se compromete a eliminar 100% das suas tarifas em até 10 anos, sendo cerca de 80% já na entrada em vigor do acordo.

Mas o que preocupa diversos setores no Brasil é que, em contrapartida, o Mercosul também terá que liberalizar 91% do comércio em volume e linhas tarifárias com os europeus.

Em sua página oficial na Internet, a UE celebra especialmente ter mais acesso aos mercados automotivo e de peças para automóveis nos quatro países do Mercosul. Também vê uma excelente janela para vender mais maquinários, produtos químicos e fármacos a bloco sul-americano.

O presidente da Comissão de Assuntos Econômicos (CAE), senador Omar Aziz (PSD-AM), é um dos que avaliam que o acordo pode ser altamente prejudicial para a indústria local.

— Será que nossa indústria automobilística tem condições de competir com a produção europeia, ou vamos perder até o mercado interno? E no geral, o que vamos exportar para a Europa em termos de tecnologia de ponta? Nada, porque não temos e não vamos ter. Vamos exportar, no máximo, só agronegócio. Não temos nenhuma perspectiva de competirmos com a Europa nos segmentos de quatro rodas, duas rodas e eletro-eletrônicos. Os europeus vão exportar até copos de vidro para nós — protestou durante audiência na comissão que preside.

Aziz teme que a Zona Franca de Manaus seja extremamente prejudicada. Ele não acredita que a produção industrial em seu estado acessará o mercado europeu, pois enfrenta dificuldades para exportar até mesmo para nações próximas, como Peru e Colômbia.

— Esse acordo prejudica nosso desenvolvimento tecnológico, que já é por demais atrasado. Vamos mandar ferro, nióbio e outras riquezas finitas para os europeus, e vamos importar o aço deles. Acho que o Brasil deve priorizar a produção do bem final também. Temos 22 montadoras de automóveis aqui e, tenham certeza, daqui a 10 anos, estarão todas fechadas — alertou.

A visão do governo
O governo reconhece que o acordo UE-Mercosul será desafiador para a indústria nacional, mas, ao mesmo tempo, acha que “abre-se uma relevante janela de oportunidades”.

Durante a audiência na CAE, Lucas Ferraz, do Ministério da Economia, disse que, em comparação com a Europa, o Mercosul terá, no geral, cinco anos a mais para adotar as tarifas liberalizantes.

O setor automobilístico brasileiro, por exemplo, só adotará a tarifa zero após 15 anos, através de quedas graduais. O mesmo se dará com outros setores, enquanto a Europa terá 10 anos para fazer o mesmo. Ferraz também crê que a indústria nacional poderá ganhar com a maior possibilidade de importar componentes.

Serviços e compras governamentais
No site da UE na internet, o documento oficial que anunciou o acordo dá destaque à abertura do mercado de compras governamentais de Brasil e Argentina para as empresas europeias. Ressalta que em ambos os casos, inclusive os entes subnacionais (como estados e municípios) também deverão adotar um tratamento sem discriminação aos europeus.

Ainda é mencionado que os setores de prestação de serviços, inclusive grandes obras relacionadas à construção civil e construção de estradas, por exemplo, estarão abertas para celebrar contratos. Os europeus veem potencial para até as pequenas e médias empresas ganharem parte dos contratos nos quatro países do Mercosul.

Essa parte do acordo é visto com preocupação pelo senador Jaques Wagner (PT-BA). Em audiência na CAE, ele disse temer que a concorrência europeia exerça um efeito avassalador nas compras governamentais, gerando consequentemente perdas significativas aos fornecedores de produtos e serviços em âmbito local.

Por entender que o empresariado nacional também teria reservas a uma abertura mais ampla, os negociadores do Brasil trataram de deixar fora do acordo com a UE setores mais sensíveis e estratégicos para o país, como defesa, saúde, educação, mineração e extração de petróleo. Assim, estão salvaguardadas as políticas públicas de desenvolvimento tecnológico, saúde pública, promoção das micro e pequenas empresas e segurança alimentar.

Integração industrial
Durante debate recente na Comissão de Assuntos Econômicos do Senado, o secretário de comércio exterior do Ministério da Economia, Marcos Troyjo, apresentou um diagnóstico segundo o qual “todos os casos de sucesso econômico de países, nos últimos 70 anos, apresentaram estratégias de inserção internacional como a força motriz em seus modelos de desenvolvimento”. Troyjo incluiu na lista a Alemanha, a Espanha redemocratizada, China, Coreia do Sul e Cingapura e, mais recentemente, o Chile.

— Todas essas nações apresentaram expansão consistente da renda per capta, com seus modelos priorizando o comércio exterior na dinâmica de desenvolvimento sócio-econômico. Por outro lado, nações que ainda não conseguiram se integrar às cadeias globais de valor mostram quadros de estagnação. Estão neste caso Brasil, Argentina e Rússia — opinou.

Cm base nesse diagnóstico, o governo buscou, no acordo com a UE, regras para integrar a economia brasileira em cadeias de valor bilaterais, regionais e globais (em que um país contribui com partes dos processos e produtos de um grande grupo industrial). Exemplos disso são as empresas que desenvolvem produtos com componentes diversos, com insumos de alto valor agregado elaborados em diferentes países.

— Muito do nosso sub-desempenho econômico nos últimos 40 anos está ligado à baixa corrente comercial internacional, com uma fatia ínfima do PIB relacionada ao comércio exterior e distante das cadeias globais de produção. Tratamos política econômica e política comercial como esferas separadas. Em consequência, representamos hoje 1% do comércio mundial — declarou Troyjo na CAE.

Em sintonia com essa avaliação, o documento oficial do Itamarati que anuncia que o acordo Mercosul-UE entende que essas cadeias de valor “ampliarão o acesso do Brasil a insumos tecnológicos a preços mais competitivos, o que significa mais investimentos. São particularmente importantes para setores com elevado comércio intrafirma”.

Fonte: Agência Senado

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