Desafio brasileiro frente ao novo cenário do comércio internacional
José Diaz e Fernando Bueno*
A declaração final dos líderes do G20 em Buenos Aires reconheceu a contribuição do sistema multilateral de comércio como importante ferramenta para o crescimento, produtividade, inovação, criação de empregos e desenvolvimento. Ao mesmo tempo, reconheceu que o sistema precisa ser melhorado e que há necessidade de reformar regras da Organização Mundial do Comércio (OMC).
Apesar da declaração amenizar as tensões comerciais, estamos longes de uma solução para o problema. O Brasil, como um importante player internacional, certamente, acompanhará de perto a evolução das guerras comerciais e terá a oportunidade de defender todos os avanços conquistados pelo sistema multilateral de comércio, que ajudou a criar em 1947, com a assinatura do GATT.
A reação dos Estados Unidos da America (EUA) contra políticas do governo chinês, ampliada em março do último ano, que atingem, principalmente, as exportações chinesas, mas que também afetam exportações de outros países, inclusive o Brasil, deflagrou diversas ações por países e blocos mais atuantes no comércio internacional. Todas essas ações objetivam apoiar produtores nacionais, reduzindo a entrada de produtos importados ou garantido proteções para empresas inovadoras.
Entretanto, o forte teor político dessas ações pode gerar graves consequências para o sistema multilateral de comércio, inclusive para princípios que norteiam o sistema, como o princípio de não discriminação no tratamento entre diferentes parceiros comerciais e não discriminação entre produtos importados e produtos nacionais.
A reação norte-americana, em forma de aumento de tarifas de importação de diversos produtos, tem como pano de fundo a intervenção do governo chinês na economia do país. A intervenção teria gerado distorções no mercado chinês, norte-americano e mundial. A intervenção estaria presente em diversas formas: exigências de transferências de tecnologias, regras pouco eficazes para propriedade intelectual, restrições para o livre exercício de constituição e atuação de empresas estrangeiras no país, concessão de subsídios governamentais sob diversas formas para produtores e exportadores chineses, entre outras. Como resultado, essas políticas teriam causado um desequilíbrio do level playing field do comércio internacional.
A reação norte-americana, acusada de ser uma medida unilateral e combatida por países na OMC, demonstra que o sistema multilateral de comércio da OMC parece não ter a importância que já teve para o país.
A União Europeia, além de tomar medida imediata contra a imposição de tarifas de importação para aço pelos EUA, por meio da imposição de medida de salvaguarda, que abarca não só produtos de aço dos EUA como de terceiros países como o Brasil, apresentou proposta concreta, em setembro do último ano, para reformar a OMC. Dentre as medidas, propõe-se a criação de regras para evitar e monitorar a atuação dos governos em empresas atuantes no comércio internacional e evitar exigências de transferências de tecnologia e restrições para atuação de empresas estrangeiras em mercados locais.
Apesar dos EUA e da União Europeia terem identificados causas semelhantes, senão idênticas para suas ações. Enquanto os Estados Unidos tomam uma postura mais agressiva, ao indicar expressamente a China como a origem das distorções e utilizar a segurança nacional para justificar o aumento das tarifas (medida não regulamentada pelas regras da OMC), a União Europeia utiliza meios aparentemente menos ortodoxos para lidar com o tema, impondo medidas de salvaguarda, que apesar de detalhadamente reguladas pela OMC, são amplas e atingem um número maior de países. A UE ainda propõe caminho alternativo à continuação dessas ações (que estão sendo chamadas de guerras comerciais), ao apresentar proposta de reforma da OMC.
A China manifestou apoio irrestrito à OMC, durante a revisão de suas políticas comerciais pela OMC nesse ano e, ao assinar a declaração do G20, concordou que as regras da OMC devem ser reformadas. O país tem cada vez mais se apoiado nas regras existentes da OMC para combater práticas de dumping de exportadores de terceiros países que buscam cada vez mais o mercado chinês. O agronegócio brasileiro é um alvo frequente e importante dessas medidas chinesas. Contra as ações que vendo sendo tomadas pelos EUA e outros países, a China adotou medidas retaliatórias contra os EUA e vem buscando minimizar os efeitos reais de suas políticas públicas e industriais no comércio internacional. Apesar de ter postura liberal de apoio às exportações, a China é acusada de ter tarifas de importação relevantes.
Frente a este cenário agravado pelas guerras comerciais, o novo governo terá a oportunidade de redesenhar a política comercial brasileira. A continuação do apoio irrestrito do Brasil à OMC, à reforma da OMC e a não participação direta em guerras comerciais podem ditar os pilares da nova política comercial brasileira. O país poderá buscar um equilíbrio entre a teoria econômica, o sistema de regras e os aspectos políticos inerentes ao comércio internacional, e evitar a sobreposição dos aspectos políticos sobre os demais, como tem sido observado pelas ações dos três principais players do comércio internacional.
As primeiras declarações do governo indicam o fortalecimento da teoria econômica, por meio de uma abertura comercial seja por meio de celebração de acordos comerciais ou possivelmente pela revisão das tarifas de importação. Até o momento, não há um posicionamento formal sobre quais as contrapartidas e garantias à indústria brasileira. O caminho natural para contribuir com uma postura de maior abertura comercial seria o fortalecimento das medidas de defesa comercial tradicionais já existentes na legislação internacional e nacional, que seriam utilizadas para neutralizar os efeitos de práticas de dumping, subsídios e surto de importações pontuais que teriam que ser tratados diante da abertura comercial.
Esse modelo poderia trazer um equilíbrio e poderia garantir a previsibilidade e segurança jurídica, necessárias para ampliação do comércio exterior brasileiro. Aliás, esse modelo foi exatamente o modelo utilizado pelo GATT e OMC, onde os países em busca de acesso a mercados, aceitaram reduzir tarifas de importação, desde que o comércio desleal fosse neutralizado pelo criação e fortalecimento de regras para o comércio leal, proteção da moralidade, meio ambiente entre outros.
Conflitos de interesses são comuns no comércio internacional e, possivelmente, continuarão em alta. De qualquer forma, todos os países deveriam ver com grande preocupação uma deterioração da força institucional da OMC. Em diversas ocasiões, o Órgão de Solução de Controvérsias da OMC teve papel relevante na manutenção da paz mundial. Uma reforma das regras e a maior utilização pelos países do sistema de solução de controvérsias da OMC deveria ser um bom caminho para tratar de disputas comerciais e evitar a entrada dos países em guerras comerciais.
Olhando do ponto de vista brasileiro, as guerras comerciais tendem a aumentar os impactos nos ganhadores e perdedores do comércio internacional, principalmente, se analisados por setores. No caso do agronegócio, o Brasil, em geral, tem se beneficiado com aumento das exportações para a China. No setor industrial, a preocupação maior é o desvio da rota comercial para o Brasil e o impacto para os produtores brasileiros no mercado interno e na exportação (quedas de preços no mercado mundial). Num cenário hipotético em que a China anuncie aumento de compras de soja dos EUA e mantenha restrições para outros setores, o Brasil pode perder na soja e perder no setor industrial. Portanto, o fortalecimento da competitividade do setor industrial e de serviços no Brasil é chave para determinar a exposição do país aos efeitos da guerra comercial.
Certamente, os investimentos dos setores público e privado necessários para o sucesso da nova política comercial brasileira dependerão da contínua interação entre o público e o privado e da garantia da previsibilidade e segurança jurídica. Os desafios são grandes, mas o país tem plenas condições de enfrentá-los e aumentar a sua inserção no comércio internacional.
*José Diaz e Fernando Bueno, sócios da área de comércio internacional da Demarest Advogados
Fonte: O Estado de S. Paulo