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Guiana vive turbulência e tem conflito com Venezuela após achar petróleo

Equivale a ganhar na Mega-Sena. Um dos países mais pobres do hemisfério Ocidental, a pacata Guiana entrará, a partir do ano que vem, no seleto clube de exportadores de petróleo.

Mas a descoberta de bilhões de barris em águas profundas jogou o país numa crise política e acirrou uma antiga disputa territorial com a Venezuela do ditador Nicolás Maduro.

É difícil exagerar o impacto que os cerca de 5 bilhões de barris de petróleo descobertos desde 2015 terá na Guiana. Segundo o FMI, a ex-colônia britânica será o país do mundo que mais crescerá nos próximos três anos —em 2020 e em 2021, o salto será de 29,8% e 22,1%, respectivamente.

Em 2025, da Guiana jorrarão 750 mil barris por dia, prevê estimativa da ExxonMobil, responsável pelas descobertas. Com apenas 782 mil habitantes, será um dos países com a maior produção per capita de petróleo do mundo.

O iminente fluxo de recursos tem causado expectativa e apreensão no segundo menor PIB da América do Sul (atrás do Suriname). Hoje, o principal produto de exportação é o ouro, extraído de forma precária por cerca de 15 mil garimpeiros brasileiros, beneficiados por uma lei permissiva e uma fiscalização corrupta.

Por ora são raros os indícios de mudanças em Georgetown, uma capital suja, sem calçadas, com casas de madeira malconservadas e cortada por canais da época colonial, que recebem parte do esgoto. Com 355 mil habitantes, é a única cidade do país com mais de 50 mil habitantes.

Reflexo da população de origem africana e indiana, a capital guianense mistura vacas vagando pelas ruas, mesquitas e templos hindus com forte influência cultural de países de maioria negra como Jamaica e Trinidad e Tobago, outras ex-colônias britânicas cuja língua oficial é o inglês.

Aos poucos, os sinais começam a aparecer. Os preços de aluguéis e imóveis dispararam. Em novembro, a American Airlines começou a voar quatro vezes por semana entre Miami e Georgetown, cujo aeroporto está em ampliação. Para este ano, a United deve abrir a rota para Houston.

Ao lado da Venezuela e de Trinidad e Tobago, famosos por desperdiçar a renda petroleira, a Guiana sonha em se transformar em uma Dubai, mas teme que o conturbado cenário político a deixe mais próxima de países devastados por corrupção e má gestão.

Mais do que ideologia, os dois principais partidos do país são divididos por linhas étnicas. Hoje na oposição, o indoguianense PPP (Partido Progressista Popular) tenta abreviar em dois anos o mandato do presidente David Granger, do afroguianense PNC (Congresso Nacional Popular), alegando que ele conduz mal a política petroleira.

Em 22 de dezembro, a coalizão governista perdeu a moção de não confiança no Congresso depois que um dos seus deputados votou com a oposição. Ameaçado, Charandass Persaud fugiu do país.

Pela legislação, o país terá de realizar nova eleição em 90 dias, mas aliados de Granger contestaram o resultado na Suprema Corte com dois argumentos. Primeiro, querem anular o voto de Persaud por ele ter dupla cidadania, o que é proibido, mas amplamente tolerado (há dez outros deputados na mesma situação).

Os governistas também questionam o número de votos para obter a maioria simples dos 65 parlamentares. A alegação é de que os 33 votos obtidos pela oposição não são suficientes, embora o próprio governo já tenha aprovado vários projetos com essa quantidade. A Suprema Corte ainda não julgou os recursos.

Para piorar o impasse, Granger, 73, um oficial militar reformado que estudou na Academia Militar das Agulhas Negras, está com câncer e viaja regularmente a Cuba para fazer sessões de quimioterapia.

“Caso não haja eleições em 90 dias, consideraremos este governo inconstitucional”, disse à Folha o líder da oposição, o parlamentar e ex-presidente Bharrat Jagdeo (PPP), em entrevista em seu escritório.

“Gostaríamos de ter um fundo nos moldes da Noruega”, afirma Jagdeo, que acusa Granger de ter assinado um contrato favorável à ExxonMobil. “Mas eles têm um projeto de lei que prevê um fundo administrado pelo Banco Central, onde o ministro das Finanças tem forte influência. Vamos mudar isso, queremos separado do governo.”

A reportagem solicitou entrevista ao governo guianense, mas não teve resposta. O representante na Guiana da ExxonMobil informou que só dá entrevistas à imprensa local.

VENEZUELA E FUGA DE CÉREBROS SÃO OBSTÁCULOS AO AVANÇO
A Venezuela reclama o equivalente a dois terços do território da Guiana, incluindo a área marítima onde o petróleo foi encontrado, a 200 km da costa. O regime de Nicolás Maduro intensificou a disputa após a descoberta das reservas de petróleo, em 2015.

No ano passado, o caso chegou à Corte Internacional de Justiça, em Haia. Em 23 de dezembro, um dia após a aprovação do voto de não confiança no Parlamento, um helicóptero venezuelano tentou aterrissar em um petroleiro norueguês contratado pela ExxonMobil.

Em nota no último dia 4, o Grupo de Lima, do qual o Brasil e a Guiana fazem parte, demonstrou “profunda preocupação” e exortou o regime de Maduro a “desistir de ações que violem os direitos soberanos de seus vizinhos”.

Um desafio da Guiana será conseguir mão de obra qualificada para trabalhar no novo setor petroleiro e gerir o faturamento, que deve chegar a US$ 20 bilhões (R$ 75 bilhões) por ano, segundo o governo.

A maioria dos guianenses vive fora do país, sobretudo em EUA e Canadá. Entre quem tem curso superior, são 80%.

Um dos poucos a retornar é o empresário Lars Mangal. Após duas décadas em empresas petroleiras no exterior, ele voltou a Georgetown para fundar a Totaltec, que já treinou cerca de cem guianenses para trabalhar em alto mar.

Um deles é o ex-paramédico militar Courtney John, 37, que fazia bicos como segurança e taxista quando foi contratado pela Totaltec. “Há espaço para mais cursos, para mais gente participando.”

Apesar da proximidade, a participação brasileira é quase nula. Poderia ter sido diferente, segundo Jagdeo, que pediu ao então presidente Lula que ajudasse a trazer a Petrobras para fazer pesquisa. A conversa, porém, não prosperou.

Até agora, o único empresário brasileiro que demonstrou interesse é Alexandre Saverin, irmão de Eduardo, fundador do Facebook. Em 2018, ele foi ao país sondar as possibilidades em logística e infraestrutura portuária.

Fonte: Folha de S. Paulo

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