Governo Bolsonaro: A aproximação entre presidente brasileiro e Israel pode afetar o mercado bilionário de carne halal no Brasil?
Em fevereiro, uma ofensiva comercial de exportação brasileira serviu milhares de omeletes e shawarmas de frango halal em Dubai. Quatro meses antes, foi a vez do churrasquinho brasileiro em Paris – sempre de carne halal, buscando atiçar o apetite de potenciais compradores em grandes feiras de alimentos internacionais.
Ações semelhantes ao longo das décadas têm feito parte da estratégia de expansão da venda de carne bovina e frango halal, produzidas a partir de regras estabelecidas pela lei islâmica.
Os esforços do país, que passam também por investimentos em frigoríficos seguindo esses preceitos, surtiram efeito: o Brasil hoje é o maior exportador global de proteína halal, cujo mercado consumidor reúne 1,8 bilhão de consumidores muçulmanos.
Mas a visita do presidente Jair Bolsonaro a Israel dará sequência a tratativas que podem afetar essas exportações: a promessa de mudar a embaixada brasileira em Israel de Tel Aviv para Jerusalém, seguindo os passos do presidente americano Donald Trump.
A mudança tem potencial de provocar atritos com palestinos e países árabes, rompendo com a postura de neutralidade mantida pelo Brasil desde a fundação do Estado de Israel, há 70 anos. Fixar a embaixada em Jerusalém implicaria o reconhecimento da cidade sagrada como capital israelense, enquanto palestinos também pleiteiam soberania sobre a cidade que desejam ter como sua capital.
Segundo o Itamaraty, a promessa de campanha de Bolsonaro “permanece em estudo”. “No entendimento brasileiro, a perspectiva de melhorar as relações com Israel não implica piora das relações com os outros parceiros do mundo árabe”, afirma o Ministério das Relações Exteriores à BBC News Brasil.
Apreensão no setor
A hipótese de mudança aventada por Bolsonaro durante a campanha eleitoral de 2018 tem gerado apreensão entre entidades comerciais, representantes da indústria e funcionários do setor, que temem um possível embargo dos países árabes às exportações brasileiras se a mudança de embaixada for concretizada.
O presidente da Câmara de Comércio Árabe Brasileira, Rubens Hannun, afirma que o tema é sensível, e que países árabes têm demonstrado preocupação em conversas, cartas e movimentações a nível diplomático.
“É arriscar desnecessariamente, algo que poderá colocar em risco um mercado que demorou muito para ser estabelecido”, considera Hannun. “Nosso medo é que essa relação (entre o Brasil e os países árabes) possa enfraquecer. Não haveria uma quebra imediata, mas a médio e longo prazo veríamos uma perda de potencial, um retrocesso.”
De acordo com a Câmara de Comércio Árabe Brasileira, as exportações de carnes de frango e halal para países árabes aumentaram 418% nos últimos 15 anos – pulando de US$ 706 milhões em 2003 para US$ 3,65 bilhões em 2017.
Hoje, o Brasil é de longe o principal fornecedor de proteína animal halal para o mundo árabe, tendo suprido 51,9% dessa demanda em 2017, segundo dados do Centro de Comércio Internacional (ITC) – ou seja, mais de metade do consumo.
Os países árabes e o Irã compraram mais de um terço (36,3%) da proteína halal exportada pelo Brasil em 2017, e respondem por cerca de 10% das exportações do setor agropecuário do Brasil, e por quase 6% de todas as exportações brasileiras, segundo dados do Ministério da Economia.
Um embargo árabe às exportações nacionais “amplia o grau de incerteza para que as empresas brasileiras realizem investimentos no território nacional voltados à expansão da produção de produtos halal, pois os novos investimentos podem se tornar gastos sem uso”, afirma a Câmara Árabe Brasileira.
Para uma fonte diplomática árabe ouvida pela BBC News Brasil, a mudança teria implicações negativas para a estabilidade na região e para as negociações do processo de paz no Oriente Médio, e geraria prejuízos à relação com países árabes sem uma real contrapartida na relação com Israel.
“Não há qualquer razão para fazer isso a não ser envergonhar os parceiros árabes em suas relações históricas com um país amistoso como o Brasil. A questão não é quem vai ganhar em relação a importações ou exportações. A questão real é por que abrir mão de uma oportunidade genuína de continuar a expandir parcerias em todas as áreas com os 22 países árabes, e com os 57 Estados-membros da OIC (Organização para a Cooperação Islâmica), em vez de um (Israel)”, afirma essa fonte, em conversa com a reportagem.
Abate halal
A denominação halal designa “lícito” e representa aquilo que está em conformidade com as regras estabelecidas pela lei islâmica (a sharia). As regras são aplicadas a alimentação, remédios, lazer e vestuário. Produtos halal não podem ter vestígios de itens proibidos aos muçulmanos, como álcool, carne de porco e seus derivados.
Para que a proteína seja considerada halal, o animal tem que ser abatido seguindo uma série de especificações. A degola precisa ser feita com um facão afiado, com corte em forma de meia lua. O degolador tem que ser necessariamente muçulmano. De um só golpe, deve cortar as jugulares, veias e traqueia do animal, imediatamente após recitar a frase “Bissmillah Allahu Akbar” – “Em nome de Deus, Deus é maior!”
“Não basta falar a frase. O abatedor precisa ter no coração o sentimento de que está fazendo o abate halal para alimentar uma pessoa, e não está matando para fazer o animal sofrer ou por maldade”, descreve Kaled Zoghbi, coordenador halal da produção de aves da Federação das Associações Muçulmanas no Brasil (Fambras), a principal certificadora de produtos halal no país.
O golpe precisa ser rápido e certeiro, descreve, cortando as veias jugulares de uma vez, causando a morte instantânea e buscando eliminar a possibilidade de liberação de toxinas que contaminem a carne. O escoamento posterior do sangue tem que ser completo.
A produção seguindo os preceitos halal começou a ser implementada no Brasil a partir de 1979, com a fundação da Fambras pelo libanês Hajj Hussein Mohamed El Zoghbi. Hoje, a entidade tem mais de mil degoladores espalhados pelo Brasil. Seu filho e atual presidente da Fambras, Mohammed El Zoghbi, leva o trabalho adiante.
El Zoghbi considera cedo para estimar o impacto que a mudança de política externa do Brasil em Israel teria para esse mercado.
“Nós levamos 40 anos para formatar esse mercado. As pessoas têm que enxergar isso. É um trabalho árduo, sério, que visa ao crescimento do mercado brasileiro e sempre buscou desenvolver a credibilidade do Brasil no exterior. A população islâmica consome o produto brasileiro confiando no que a gente faz”, afirma.
Açaí, pão de queijo e detergente
Presidente da Câmara de Comércio Árabe Brasileira, Rubens Hannun destaca que as exportações do Brasil para países árabes cresceram sete vezes nos últimos 20 anos.
Em 2018, quase 50% das exportações de frango brasileiras foram do produto halal – tanto para países árabes quanto para não árabes, somando 1,966 milhão de toneladas, segundo a Associação Brasileira de Proteína Animal (ABPA).
Já no mercado de carne bovina, que bateu recorde de exportações em 2018, o corte halal para consumidores árabes respondeu por 20,8% do total vendido no mundo, somando 341 mil quilos exportados, segundo a Associação Brasileira das Indústrias Exportadoras de Carnes (Abiec).
Questionada sobre eventuais impactos da mudança da postura brasileira em Israel, a ABPA afirma que o setor “prefere não especular sobre os riscos efetivos destas tratativas”, dado que não foram tomadas decisões até o momento.
A associação destaca, entretanto, a “grande importância” que as exportações de carne de frango halal têm para o Brasil, tanto na geração de empregos como de divisas para o país – atendendo a mercados expressivos como Arábia Saudita, Emirados Árabes Unidos, Kuwait, Iraque e Egito.
Embora a proteína animal seja o principal produto halal do Brasil, o leque de produtos que podem ser qualificados como halal é enorme – e outras indústrias brasileiras têm se beneficiado por essa expansão de olho no mercado muçulmano, ressalta Dib Tarras, diretor de certificação halal do setor industrial da Federação das Associações Muçulmanas no Brasil (Fambras).
A federação já concedeu certificação halal a mais de 170 indústrias brasileiras, afirma Tarras – incluindo produtos químicos, farmacêuticos, cosméticos, chocolate, laticínios… O Brasil exporta até leite condensado, açaí e pão de queijo halal.
Os países árabes representam 20% dos consumidores muçulmanos do mundo. “O Brasil ainda tem um mercado gigantesco a explorar”, afirma.
Substituição difícil
Em entrevista à BBC News Brasil em janeiro deste ano, o presidente da Associação de Comércio Exterior do Brasil (AEB), José Augusto de Castro, afirmou que as exportações de frango seriam as mais afetadas seguidas pelas de carne e de açúcar.
Mesmo assim, Castro avalia que dificilmente os países árabes conseguiriam, no curto prazo, substituir amplamente as importações brasileiras, já que há poucos países capazes de exportar na mesma quantidade e custo que o Brasil. Além disso, as alternativas existentes para as nações islâmicas também esbarram em conflitos geopolíticos.
Se quisesse substituir a carne brasileira, o mundo árabe precisaria recorrer aos segundo e terceiro maiores exportadores: Estados Unidos e Austrália.
A questão é que os Estados Unidos, sob o governo Trump, foram os primeiros a transferirem a embaixada para Jerusalém. E, em dezembro, a Austrália reconheceu oficialmente Jerusalém como capital de Israel, embora não tenha transferido sua embaixada para lá.
No caso do frango, Castro afirma que a União Europeia poderia, a médio prazo, tentar ocupar o vácuo deixado pelo Brasil. Ainda assim, seria custoso para os países árabes, já que o frango brasileiro é mais barato.
Quanto ao açúcar, produtores temem perdas a médio e longo prazo, mas também não acreditam que seja possível uma substituição completa do produto brasileiro.
“Não vejo, no curto prazo, um substituto imediato para o açúcar brasileiro. De uma forma estrutural, o Brasil responde por 50% do comércio mundial de açúcar”, ressalta Paulo Roberto de Souza, coordenador de competividade internacional da maior associação de usineiros do Brasil, a União da Indústria da Cana de Açucar (Unica).
Ele afirma, porém, que a médio prazo, Tailândia, Índia e União Europeia podem se movimentar para substituir parte do que hoje é exportado pelo Brasil aos países árabes.
‘Não vão colocar nossos empregos em risco’
Para se habilitar a produzir proteína halal, frigoríficos precisam implementar uma série de mudanças. As exigências incluem espaços completamente separados para fazer o abate halal e linhas de produção em velocidades diferentes para a degola manual do frango, geralmente feita com disco de corte no abate não halal.
Os degoladores são necessariamente muçulmanos, o que abriu um mercado para trabalhadores islâmicos no país – e acabou gerando empregos para refugiados.
É o caso do ganês Tijani Jafaru, que chegou ao Brasil fugindo de ameaças em seu país e acabou conseguindo emprego em um frigorífico em Santa Catarina, 100% voltado para exportação. Ele é um dos 33 muçulmanos que trabalham fazendo o abate halal de frangos em uma unidade na cidade de Seara, onde a marca homônima foi fundada.
“O Brasil é uma mãe que ajuda quando o filho está chorando”, compara Tijani, 33 anos, que foi vítima de um golpe em Gana. Pediu empréstimo de um banco para comprar um terreno, recebeu documentação falsa e acabou ficando sem teto, com uma dívida bancária e perseguido pelos mafiosos por trás do esquema.
Ele diz que os colegas de trabalho são “igual a família” e é grato pelo trabalho – que lhe traz sustento e lhe permite enviar dinheiro para casa para pagar gradualmente sua dívida e ajudar os dois filhos, que sonha em trazer para cá.
No frigorífico, conversas sobre as possíveis mudanças de rumo na política externa brasileira em Israel ganharam espaço entre as linhas de produção, despertando temor entre Tijani e os demais funcionários.
“Todos nós que trabalhamos nesses frigoríficos temos medo”, diz o egípcio Moustafa Mitwalli, supervisor da unidade, que chegou do Egito há oito anos. Só lá são 700 funcionários, pondera – levando sustento para cerca de 700 famílias.
“Se a mudança (da embaixada em Israel) acontecer em favor do governo israelense, e problemas com os países árabes começarem, o risco não é só para a gente, é para todos que trabalham nesses frigoríficos, os brasileiros também”, considera Mitwalli.
“Acredito que não vão fazer isso. Não vão colocar a economia do Brasil e os nossos empregos em risco.”
Fonte: BBC Brasil