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Ferrovia Norte-Sul: falta de disputa em novo leilão

Espinha dorsal da malha ferroviária brasileira, a Ferrovia Norte-Sul é mais uma obra faraônica que chega à fase adulta incompleta. E, não por mera coincidência, é também manchada por irregularidades antigas e suspeitas de novos malfeitos. Idealizada em 1985, completa 34 anos na expectativa do leilão de seu trecho central, marcado para 28 de março.

O edital da licitação, publicado às pressas ainda no governo Temer, é alvo de contestações e acusações de concorrência desleal. Isso também aconteceu na infância do projeto, na concorrência para construção de 18 lotes da ferrovia em maio de 1987.

Na época, em 13 de maio de 1987, o colunista da Folha de S.Paulo Jânio de Freitas escreveu sobre 1 esquema de corrupção na licitação que revelou, por meio de 1 anúncio codificado na seção de classificados do jornal, o resultado da disputa. O caso ocorreu durante o governo de José Sarney (MDB).

Durante análise da minuta do edital em agosto de 2018, o Ministério Público de Contas, órgão do TCU (Tribunal de Contas da União), pediu para que o documento fosse rejeitado. A suspensão da disputa também foi recomendada pelo Ministério Público Federal em 28 de fevereiro.

O procurador Júlio Marcelo de Oliveira afirma que os termos do edital favorecem as duas empresas que fazem conexão com o trecho que será concedido: a VLI, responsável pelo tramo Norte da ferrovia até o Porto de Itaqui (MA), e a Rumo Malha Paulista, que faz conexão com a ferrovia e desemboca no Porto de Santos (SP).

A suspeita de favorecimento se deve ao fato de que a nova concessionária ficará com 1 trecho isolado que será operado entre o tramo Norte e a estrada de ferro da Rumo. Sem saída para o mar, dependeria da autorização das empresas para chegar com os trens até os portos –o direito de passagem. A tendência é de que ninguém queira entrar em 1 negócio desse tipo. Ou que os únicas interessadas sejam a VLI e a Rumo, reduzindo a concorrência.

As regras para a negociação dos direitos de passagem do vencedor não são claras no edital. E o pouco que está resolvido abarca apenas 5 dos 30 anos da concessão, afirma Júlio Marcelo. “Existe uma minuta de contrato assinada, unilateralmente, pela ANTT. Nem a Estrada de ferro Carajás nem a Malha Paulista assinaram”, disse Júlio Marcelo ao Poder360.

Para o tempo restante do contrato, o governo promete encontrar uma solução quando assinar as prorrogações antecipadas com as concessionárias. O processo da Rumo Malha Paulista é o mais adiantado, mas a minuta do edital ainda está em análise pela área técnica do TCU.

Na visão do procurador, a VLI, empresa da qual a mineradora Vale é sócia, leva ainda mais vantagem. As obras na parte ao sul dos 1.537 km que serão ofertados não estão concluídas e ficarão sob responsabilidade da Valec, estatal responsável pela construção e manutenção de ferrovias.

“É uma licitação que está dirigida para favorecer a VLI. Problemas básicos de restrição de competitividade não foram resolvidos pelo governo, nem foram tratados pelo TCU.”

Os termos estabelecidos podem, segundo Júlio Marcelo, dar à VLI ou à Rumo –ou até a 1 consórcio entre as empresas– o domínio completo das ferrovias que cruzam o Centro-Oeste do país. “É a consagração do duopólio, patrocinado por 1 governo que veio para fazer diferente.”

ABRE ALAS PARA O TREM PASSAR
Na avaliação do economista Daniel Keller, sócio da UNA Partners, a maior probabilidade é que o leilão não tenha grande disputa. Para ele, é natural que as ferrovias brasileiras estejam sob domínio de poucas empresas, por conta da limitada malha ferroviária do país e do grande volume de investimentos que tais empreendimentos demandam.

O novo operador da Norte-Sul pagará, no mínimo, R$ 1,3 bilhão em outorga para ficar com o trecho. Além disso, a previsão é que a concessionária invista R$ 2,8 bilhões no empreendimento.

“Com a ressalva do direito de passagem, é muito difícil entrar na disputa. Pode ter uma surpresa de uma nova empresa ou consórcio [interessada]. Mas, é improvável”, diz Keller.

Para o professor da Fundação Getulio Vargas e sócio da LL Advogados, Leonardo Coelho, o conhecimento dos trechos e a operação de trens na estrada também integram a lista de vantagens da VLI na licitação em relação a possíveis concorrentes.

Coelho afirma, no entanto, que o ideal era que as renovações fossem feitas antes de novos leilões, para dar mais segurança jurídica garantia a novos investidores. “É delicado fazer as duas coisas ao mesmo tempo.”

O Ministério da Infraestrutura afirmou, em nota, que o direito de passagem “está garantido juntamente às ferrovias visitadas”. É assim anda que a negociação seja balizada pela resolução 3695 da ANTT, que regulamenta a utilização do direito de passagem nas malhas atuais, e pelos termos aditivos dos contratos das concessões –proposta que foi submetida a audiência pública e passou pelo crivo do TCU.

A VLI afirmou que o edital é “público, transparente e aberto” e estabelece as normas de direito de passagem a serem executadas pelo vencedor frente às atuais concessionárias. A empresa disse que ainda está avaliando a participação no leilão. Procurada, a Rumo não quis se manifestar.

ESTRADA PARA ESCOAMENTO DE GRÃOS
Dados da CNA (Confederação da Agricultura e Pecuária do Brasil) apontam que há uma demanda crescente para escoamento de grãos para os portos do Norte, o que poderá ser intensificado com a operação da Norte-Sul.

Em 2018, a produção de soja e milho para exportação escoada para portos do Norte e Nordeste cresceu mais de 360% em 10 anos.

A assessora técnica da Comissão Nacional de Logística e Infraestrutura da CNA, Elisangela Pereira Lopes, afirma que é urgente que o Brasil amplie sua rede de escoamento e, com isso, diminua parte do custo que incide sobre os produtos, retirando a competitividade da produção brasileira.

Matheus Braga de Castro, especialista em políticas e indústria da CNI (Confederação Nacional da Indústria), afirma que, com a disponibilidade da ferrovia, poderá crescer a atratividade para o transporte de outros produtos, como celulose, óleo diesel, gasolina e combustíveis derivados. É um caso de oferta que cria a própria demanda.

Hoje, porém, os produtos agrícolas predominam. Dos 8,8 milhões de toneladas transportados pelo tramo da VLI na Norte-Sul em 2018, soja e milho representaram 75% do total.

Até 2014, o transporte ferroviário representava apenas 25% da matriz de transporte brasileira, que é predominantemente rodoviária. Além da falta de projetos de estradas de ferro, muitos empreendimentos já licitados seguem sem ser construídos, ou são operados apenas de modo parcial.

Em 2017, 31% da malha ferroviária brasileira –28.218 km– não haviam sido explorados, sendo que 23% desse total são trechos considerados como sem condições operacionais, por falta de trilhos ou vagões ou por falta de interesse da concessionária em explorar os trechos.

O diretor-executivo da CNT (Confederação Nacional dos Transportes), Bruno Batista, disse que, ainda que a Norte-Sul seja concluída, serão necessárias novas ramificações na malha ferroviária para atrair uma grande. variedade de cargas. “Ainda levará algumas décadas para deixarmos de ter uma matriz predominantemente rodoviária”, disse.

Fonte: Poder 360

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