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Encalhe do ‘Ever Given’: o mais complexo caso de Avaria Grossa dos tempos modernos

O navio “Ever Given” foi desencalhado, o canal de Suez retornou às atividades e muitos achavam que seria a última vez que ouviríamos falar sobre o assunto. Entretanto, na última semana mais de vinte mil empresas com carga a bordo do navio “Ever Given” dormiram e acordaram com a surpresa de que Avaria Grossa havia sido declarada pelo proprietário da embarcação.

Surgindo uma dúvida para muitos: afinal de contas, o que é Avaria Grossa ?

A Avaria Grossa é um antigo instituto do Direito Marítimo que prevê que todos os sacrifícios e despesas intencionais, extraordinárias e razoavelmente feitas e incorridas para salvar o navio, carga e outras propriedades a bordo, e qualquer frete que esteja em risco de um perigo comum, devem ser compartilhados por esses interesses na proporção de seus respectivos valores no final da viagem.

O Instituto foi criado como forma de mitigar e compartilhar os riscos envolvidos em uma aventura marítima, diante de todas as intempéries da natureza. Servindo, também, como incentivo à exploração do transporte marítimo, ora, estamos falando de uma atividade de alto risco em que navios muitas vezes transportam carga mais valiosa que a própria embarcação, sendo necessário instrumentos que permitam o compartilhamento de riscos.

No que tange não haver possíveis danos à carga e que os danos ao navio parecem ser mínimos, ainda resta o custo da operação de salvamento que demandou a utilização de 13 rebocadores e duas dragas, bem como possíveis pedidos de indenização de uma variedade de interesses.

Na realidade o encalhe do “Ever Given” está se desenhando um dos mais complexos casos de Avaria Grossa dos tempos modernos. A LLodys List já divulgou que o caso possui um potencial de litígio envolvendo mais de 20.000 contêineres, com alguns possuindo até 20 consignatários distintos.

Do outro lado, temos a própria Autoridade do Canal de Suez que pleiteia US$ 1 bilhão de indenização e outros armadores que tiveram suas embarcações retidas durante diversos dias em virtude do encalhamento no canal. Além de possível dano a cargas perecíveis nos navios que aguardavam passagem.

O que fez o proprietário da embarcação “Ever Given” ingressar com ação judicial em Londres para visando assegurar limitação de responsabilidade contra todos possíveis partes que restaram prejudicadas com a paralisação do Canal de Suez.

Sem dúvidas alguma o mercado securitário deverá sofrer enorme pressão com as primeiras demandas surgindo, além da busca de segurados por uma mitigação de prejuízos.

Diante da declaração da Avaria Grossa, será designado o Regulador da Avaria que avaliará o valor da cada carga a bordo e aplicarão uma fórmula que determina a contribuição financeira de cada proprietário da carga.

A contribuição é considerada como Cargo Lien por boa parte da legislação estrangeira, bem como pela legislação brasileira. Assim, consignatários precisarão apresentar uma garantia de sua contribuição a Avaria Grossa para poderem receber a mercadoria.

Entretanto, o custo total do sinistro para seus proprietários provavelmente levará algum tempo para determinar, principalmente se envolver reivindicações de outros terceiros, o que significa que os reguladores poderão permanecer incapazes de fixar o índice de contribuição.

O que poderá acarretar em maior lentidão para liberação das cargas.

E aqui entram as seguradoras, pois consignatários que tiverem contratado apólice de seguro poderão solicitar que seja apresentada Carta de Garantia do pagamento de eventual contribuição que venha a ser regulada em sede de Avaria Grossa, e assim, acelerar a liberação de carga.

Enquanto que consignatários sem seguro ficarão em situação extremamente delicada, pois terão que aguardar a regulamentação ser finalizada para poder vir a apresentar garantia em dinheiro, o que poderá demorar diversos meses. Enquanto isso, a carga provavelmente permanecerá retida em virtude do lien existente.

Para se ter noção, o último grande caso de Avaria Grossa declarada foi o do navio “Maersk Honam”, em que o regulador de avarias avaliou a garantia de salvamento fixa em 42,5% do valor da carga e 11,5% como um depósito de Avaria Grossa.

Portanto, para cargas avaliadas em US$ 100.000 o depósito para obter a liberação da carga foi de US$ 54.000. Permitindo, justamente, que o armador exerça seu direito ao cargo lien, inclusive podendo vir a vender a carga quando o depósito, caução ou garantia não seja apresentado pelo proprietário da carga.

A grande verdade é que o caso do navio “Ever Given” deverá repercutir por diversos anos. Ainda não é possível sequer prever o prejuízo sofrido por todas as partes, muito menos a quantidade de “claims” que serão apresentados em diversas jurisdições e tribunais.

Estamos somente diante da ponta do Iceberg que em um futuro próximo deverá se revelar em sua totalidade.

Os próximos anos deverão ser de enorme dor de cabeça e uma longa batalha jurídica por todos aqueles envolvidos na aventura marítima da embarcação, além de todas as outras partes que possam ter vindo a sofrer danos em virtude do encalhamento.

Quem viver, viverá! Como diria o grande poeta: Navegar é preciso!

E, sem dúvidas alguma, continuaremos a navegar!

 

 

 

Fonte: Larry Carvalho é advogado e árbitro com vasta experiência em litígios e ênfase em transporte marítimo

 

 

 

 

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