De ferrovias a batatas: interesse por dívidas de empresas está em alta
Apesar de o acesso ao crédito continuar cheio de problemas para pequenas e médias companhias, para as de capital aberto os caminhos voltaram a se abrir — ainda que não em grandes avenidas. As condições estão em níveis suficientemente interessantes para encorajar grandes emissores, para além das empresas dramaticamente afetadas pela crise e que tiveram de correr para se capitalizar. Ao mesmo tempo, o cenário está favorável para o investidor.
Junho deve terminar com 4,2 bilhões de reais de emissões (considerando o que já foi concretizado e o que deve fechar nos próximos dias) e a fila para julho já foi aberta. Há mais de 1 bilhão de reais em operações no forno. Os valores consideram a soma de certificados de recebíveis do agronegócio (CRAs) e debêntures — e uns parcos certificados de recebíveis imobiliários (CRIs) — que deverão chegar até o varejo.
Apesar de a lista de operações na Comissão de Valores Mobiliários (CVM) mostrar forte atividade nos meses de abril e maio, aquelas emissões foram, em sua maioria, com prazos mais curtos, de negócios mais estressados pela crise e absorvidas pelos bancos — sem distribuição posterior para mercado o secundário (até o momento).
O paradigma mudou mesmo com a emissão de 800 milhões de reais em debêntures de dez anos feita pela Rumo em maio, para investimento na duplicação da malha ferroviária paulista. A colocação já oferecia prazo mais longo, taxa menos estressada e foi redistribuída pelos bancos no mercado secundário com boa demanda.
A demanda do mercado secundário, formada basicamente por fundos de investimento e também pela pessoa física (ainda que mais timidamente) é o que tem sustentado essa retomada. A atratividade nas taxas, em relação aos juros dos títulos públicos, é a razão do interesse. O Banco Central cortou novamente a taxa Selic na última reunião, para 2,25% ao ano, e reduziu muito o apetite pelos clássicos fundos DI, fortalecendo um movimento de diversificação que já tinha ganhado tração em 2019.
Odilon Costa, analista de renda fixa e crédito privado da EXAME Research, explicou que a retomada das emissões foi auxiliada por uma iniciativa da CVM. A autarquia retirou a exigência de que os bancos assumam as emissões por 90 dias (o chamado lock-up) antes de colocá-las no mercado secundário. Assim, as instituições compram pela taxa da emissão e abrem para revenda aos investidores quase que imediatamente, com um desconto em relação ao preço original — ou seja, um rendimento para o investidor um pouco inferior ao da emissão. A diferença serve para remunerar toda a cadeia de distribuição: além dos próprios bancos coordenadores, as corretoras e até agentes autônomos.
Outra medida do regulador que ajudou a estimular as operações foi a suspensão da exigência de intervalo entre as emissões para o período de crise, segundo o analista. As companhias agora estão livres para fazer colocações sequenciais e antes tinham de esperar um período mínimo de quatro meses.
Na manhã desta terça-feira, para completar o quadro, saiu a regulamentação para que o Banco Central (BC) possa também ser comprador dos papéis de dívida de companhias, assim como o Federal Reserve (Fed) nos Estados Unidos. O objetivo dessa iniciativa — cujo projeto foi anunciado no início da crise — é que a instituição sirva como provedora de liquidez em situações de estresse. Com isso, os agentes privados têm mais conforto para atuar livremente.
Os fundos podem comprar os títulos sabendo que, mesmo que venham a sofrer resgates, terão mercado para vendê-los sem prejudicar tanto as taxas e, portanto, a própria rentabilidade da carteira, conforme explicou Costa. O BC não precisa necessariamente ser muito ativo. Os participantes do mercado ficam mais tranquilos só de saber que a possibilidade existe. Prova disso é que as condições para as empresas foram melhorando conforme o projeto de regulamentação da medida avançava.
A iniciativa ajuda a estabilizar as taxas das companhias de maior qualidade de crédito e, com isso, facilita a precificação em toda a cadeia. A consequência é que o crédito se abre para emissores menores e com risco maior — na prática, os mais necessitados.
Com o mercado secundário ativo, os bancos não precisam absorver “em seus próprios balanços” as operações, explicou o analista da EXAME Research — e assim várias operações podem acontecer simultaneamente mesmo num ambiente de maior risco.
A Minerva, por exemplo, viu a emissão de CRAs do começo do mês, de 600 milhões de reais, desaparecer no secundário em poucos dias. O interesse do investidor fez a empresa não pensar duas vezes: dobrou a operação e liquida nesta terça-feira uma nova emissão, também de 600 milhões de reais. A companhia está captando para recomprar dívida antiga, em dólar, e diminuir seu custo financeiro.
As novas emissões já estão com prazos entre cinco e dez anos. E as taxas ficam, na maioria, entre 5% e 6% mais o indexador, que desde o fim do ano passado tem sido predominantemente o IPCA. O especialista da EXAME Research explicou que, para esses casos, as taxas na emissão chegam a representar um prêmio entre 1,8 e 2,20 pontos percentuais sobre o título público comparável com vencimento em 2030. Para o investidor, esse adicional fica em 0,80 a 1,4 ponto percentual.
A remuneração das novas operações, segundo Costa, está mais interessante do que a dos títulos comparáveis que já estavam o mercado secundário. O caso da Rumo ilustra a situação. A emissão de maio é praticamente idêntica a uma captação de 500 milhões realizada em fevereiro de 2019. No mercado, o papel novo (RUMOA4) pagava um prêmio de 0,50 ponto percentual acima do velho (RUMOA2).
Como cuidados, Costa aponta que, além da nota de crédito, é importante o investidor avaliar as companhias caso a caso para tentar entender como o atual cenário impacta cada negócio. “As agências costumam ser reativas aos problemas”, ressaltou ele. Na prática, isso quer dizer que a qualidade da nota cai depois que as crises já acontecem, e não antes. Apesar de ainda terem uma liquidez menor que as ações, existem alguns papéis de dívida de fácil negociação no mercado secundário e é crescente o volume de transações entre investidores.
Até o momento, o varejo só tem conseguido acesso às operações depois que os bancos colocam no mercado secundário. Isso porque a grande maioria das emissões é feita com esforços restritos, para poucas e grandes carteiras institucionais. Dessa forma, são executadas mais rapidamente. A única oferta pública disponível nesse momento é da Bem Brasil, uma produtora de batatas do interior de Minas Gerais, no valor de 200 milhões de reais, com nota de AA-, pela S&P. A liquidação da oferta será no dia 29 deste mês.
Fonte: Exame