Opinião

Cosit adota interpretação teleológica para definir exportação de serviços

Por Gustavo Brigagão

Seja para definir competências, seja para estabelecer a real amplitude de exclusões de incidências ou dos respectivos créditos tributários, a definição dos exatos contornos dos conceitos adotados pela legislação constitucional ou infraconstitucional é imprescindível para que haja um mínimo de segurança jurídica nas relações que se estabelecem entre Fisco e contribuintes.

Apesar de o Código Tributário Nacional (CTN) ter estabelecido métodos de interpretação a serem adotados conforme o caso (artigos 110 e 111), a jurisprudência dos nossos tribunais superiores deixa a desejar quando o que se discute é a efetiva aplicação dessas normas aos casos concretos.

Disso decorre enorme agravamento do conflito de competências entre entes políticos tributantes, cuja solução já é originalmente complexa em decorrência da forma como concebido o nosso Sistema Tributário Nacional, que subdividiu a competência para a tributação indireta entre as três esferas da Federação, em um formato que não encontra similaridade nos demais sistemas adotados no mundo.

A forma precisa com que se deve buscar a definição dos conceitos utilizados para definir competências tributárias é essencial para que os entes tributantes não extrapolem as suas competências e, mais importante, não invadam competência alheia, sob pena de pôr o contribuinte, maior financiador de toda a máquina pública, em estado de absoluta perplexidade e insegurança jurídica, por não saber nem o que nem a quem pagar.

Quando os nossos tribunais superiores, ao examinarem questão relativa à incidência do ICMS, dão ao conceito de “mercadoria” ou “serviços de comunicação” amplitude maior do que aquela estabelecida pelo Direito Privado, eles não só estão permitindo uma extrapolação de competência, mas, também, agravando o conflito com os municípios, na medida em que o conceito de “serviços” é automaticamente afetado e diminuído em decorrência da interpretação ampliativa acima referida.

Da mesma forma, quando os mesmos tribunais, ao examinarem questão relativa à incidência do ISS, dão ao conceito de “serviços” amplitude maior do que a prevista no Direito Privado, eles não só estão propiciando uma extrapolação de competência, mas, também, agravando o conflito de competência com os estados, na medida em que, também aqui, o conceito de “mercadorias” é automaticamente afetado e diminuído.

Em decorrência de alargamentos de conceitos como esses, é que a forma como devem ser tributadas as novas tecnologias se encontra absolutamente indefinida. Se o leitor duvida, responda, por gentileza, à seguinte pergunta: Como definir hoje, com base na jurisprudência em vigor, a forma como deverão ser tributadas as atividades realizadas por meio de downloads ou streaming?

Se a definição de conceitos é fundamental para o estabelecimento dos exatos contornos das competências tributárias atribuídas às três esferas da Federação, ela também o é quando o que se busca é a real extensão das exclusões de incidência previstas na legislação constitucional e infraconstitucional.

Repare o leitor, contudo, que a interpretação adotada nesse último caso é dotada de maior maleabilidade, na medida em que não proporciona qualquer interferência em competências tributárias alheias, e deve ser teleológica, de forma a que se preservem os valores que o legislador, originariamente, buscou prestigiar.

Essa foi a linha de raciocínio adotada pelo Supremo Tribunal Federal ao delinear o conceito de livro, para fins de aplicação da imunidade prevista no artigo 150, inciso VI, alínea “d”, da Constituição Federal (REs 330.817 e 595.676), e pelo Superior Tribunal de Justiça, ao definir a melhor forma de interpretação do disposto no artigo 111 do CTN (REsps 1.109.034, 1.468.436, 1.125.064; entre outros).

Também foi essa a linha seguida pela Receita Federal, quando, recentemente, editou o Parecer Normativo (PN) Cosit 01, de 11/10/2018, e definiu a “exportação de serviços”, para fins de aplicação das normas federais que determinam a desoneração de tributos nessas circunstâncias.

Em evento sobre o tema, organizado pela Associação Brasileira de Direito Financeiro (ABDF) e realizado no auditório do Fundação Instituto de Pesquisas Contábeis, Atuariais e Financeiras (Fipecafi), em São Paulo, do qual também participaram Ana Carolina Monguilod (organizadora), Ana Cláudia Akie Utumi, Gisele Bossa, e Fernanda Ramos Pazello, tive a oportunidade de dizer que, abstraindo-nos de serem exatas, ou não, as conclusões alcançadas no referido parecer, e, também, da real necessidade da existência desse esclarecimento, tendo em vista que as discussões que se dão em torno do conceito de “exportação de serviços” são, em regra, relativas à incidência do ISS e do ICMS (não há qualquer disputa atual mais relevante sobre a amplitude desse conceito relativa aos tributos federais), há que se enaltecer a iniciativa da Cosit em buscar defini-lo e uniformizá-lo.

De fato, é sempre muito importante que haja clareza quanto ao entendimento da Fazenda sobre as regras que regem as suas relações com os contribuintes, para que ele possa confrontá-lo, se for o caso, ou segui-lo, se concordar com as respectivas conclusões, ou não quiser correr qualquer risco de autuação.

O que afirma exatamente o PN?

Segundo ele, a Constituição Federal utilizou a expressão “exportação de serviços” para conceder desonerações de tributos, sem, contudo, delimitar o seu alcance. Da mesma forma, o legislador infraconstitucional também não apontou os parâmetros necessários à definição do real escopo do conceito, salvo algumas exceções, como a legislação relativa às contribuições do PIS e da Cofins.

Contrapôs-se o entendimento de que a exportação de serviços é uma operação de comércio que envolve necessariamente, de um lado, um prestador residente ou domiciliado no Brasil, e, de outro, um tomador de serviços residente ou domiciliado no exterior. Segundo o PN, aqueles que entendem dessa maneira confundem “a figura do agente com a própria ação” de prestar serviços.

Sustentou-se que esse equívoco decorre da adoção dos quatro modos de prestação de serviços previstos no Acordo Geral Sobre o Comércio de Serviços (GATS) como parâmetro para avaliar a existência, ou não, de exportação de serviços.

Isso porque os modos de prestação de serviços contemplados pelo GATS pressupõem a existência de um prestador residente ou domiciliado num Estado-membro da OMC e, na outra ponta, um tomador residente ou domiciliado em outro Estado-membro. São eles:

(i) Modo Transfronteriço (Cross-border Supply) – nesse caso, apenas o serviço transpõe fronteiras. Fornecedor e consumidor do serviço não deixam seus respectivos territórios por ocasião da prestação do serviço. Exemplo: consultoria em geral, serviços de telecomunicações etc.;

(ii) Modo Consumo No Exterior (Consumption Abroad) – nesse caso, o tomador do serviço transpõe fronteiras, consome o serviço no território do prestador, e é um não residente nesse território. Exemplo: serviços de hotelaria prestados a turistas ou serviços educacionais prestados a estudantes, que vão ao país do prestador apenas para consumi-lo;

(iii) Modo Presença Comercial (Commercial Presence) – nessa modalidade, o prestador do serviço transpõe fronteiras, por intermédio de um branch da sua empresa que lhe permite atuar no outro território. Trata-se de atuação por meio de um estabelecimento comercial ou profissional, assim consideradas as filiais, subsidiárias ou sucursais. Exemplo: agências ou filiais de bancos, escritórios de multinacionais etc.; e

(iv) Modo Movimento De Pessoas Físicas (Presence of Natural Persons) – nesse caso, assim como no anterior, o prestador do serviço transpõe fronteiras, mas, desta vez, por intermédio de pessoas físicas enviadas ao local da prestação, que lhe permitem atuar no outro território.

Demonstrou-se no PN que o objetivo do GATS teria sido o de regulamentar o comércio entre residentes ou domiciliados em diferentes Estados-membros da OMC. Em função disso, os quatro modos de prestação de serviços foram concebidos sob a premissa de que prestador e tomador estivessem sempre localizados em Estados diferentes.

Como o GATS jamais teve a finalidade de conceituar exportação de serviços, o PN afirma que ela pode restar não configurada, mesmo na hipótese de ocorrência de qualquer das modalidades de prestação de serviços listada no acordo. Como exemplo, o PN cita o modo “consumo no exterior”, em que, via de regra, não há se falar em exportação de serviços. Da mesma forma, o PN admite a possibilidade de que operações entre residentes no mesmo território (e, portanto, não abrangidas pelo GATS) configurem exportação de serviços.

Não há, portanto, uma correspondência automática entre ambos. O que importa para que se defina a configuração dessa exportação é verificar: (i) os elementos subjetivos da operação; (ii) o local onde se desenvolvem os atos de execução; e (iii) o local onde o proveito ou a fruição do resultado do serviço se verificarão.

Após analisar as normas que desoneram a exportação de serviços no Brasil (no âmbito de incidência do IOF-Câmbio, PIS/Cofins , IRRF, ICMS e ISS), o PN manifesta expressa discordância do entendimento adotado pela 1ª Turma do STJ no caso “GE Celma” (REsp 831.124, julgado em 2006), que deixou de reconhecer a existência de exportação de serviços e, por conseguinte, reputou válida a incidência do ISS.

Nesse caso, a empresa brasileira prestava serviços de retífica, revisão e reparo de turbinas de aeronaves a contratante residente no exterior, que lhe enviava os equipamentos danificados. Após reparados e testados no município de Petrópolis, os bens eram enviados ao exterior para serem, então, acoplados às aeronaves e utilizados. O PN consigna que o voto do ministro relator José Delgado, que se sagrou vencedor nessa ocasião, confundiu o conceito de resultado com a conclusão do serviço, aspecto esse que foi suscitado pelo voto vencido do ministro Teori Zavascki.

Outro precedente citado pelo PN foi o de 2016, da mesma 1ª Turma do STJ (AREsp 587.403, julgado em 2016). Reconheceu-se que essa decisão representou “avanço no debate, ainda que modesto”. Nesse caso, foi reconhecida a existência de exportação de serviços e afastada a cobrança do ISS. Tratava-se de projetos de engenharia desenvolvidos em território nacional, cujas especificidades indicavam que os mesmos somente poderiam ser executados na França.

Esse julgado teria atribuído peso sem precedentes à análise da real intenção do tomador do serviço. É o que se verifica do voto do ministro relator Gurgel de Faria:

“O que importa (…) é constatar a real intenção do adquirente/contratante na execução do projeto no território estrangeiro, de tal sorte que, quando o projeto, contratado e acabado em território nacional, puder ser executado em qualquer localidade, a critério do contratante, não se estará diante de exportação de serviço, mesmo que, posteriormente, seja enviado a País estrangeiro, salvo se dos termos do ato negocial se puder extrair a expressa intenção de sua elaboração para fins de exportação.” (grifos meus).

Ao buscar a interpretação teleológica das referidas normas, o PN reconhece expressamente que a intenção do legislador constituinte, ao desonerar as exportações de serviços da incidência de tributos, foi a de incentivar a atividade econômica no mercado interno. Por essa razão, o PN se propõe a “buscar uma compreensão do texto legal que não reduza o alcance da imunidade outorgada pela CF/88” e preconiza uma interpretação que “favoreça o incentivo à atividade econômica doméstica tendente à conquista do mercado externo”.

À luz dessas premissas teóricas, o PN definiu a exportação de serviços como “a operação realizada entre aquele que, enquanto prestador, atua a partir do mercado doméstico, com seus meios disponíveis em território nacional, para atender a uma demanda a ser satisfeita em um outro mercado, no exterior, em favor de um tomador que atua, enquanto tal, naquele outro mercado (…)”.

São, portanto, requisitos indispensáveis para a configuração da exportação de serviço a atuação: (i) do prestador do serviço, a partir do mercado doméstico; e (ii) do tomador, no mercado estrangeiro.

No que se refere ao item (i), acima, o PN conclui que o prestador de serviços atua a partir do mercado doméstico quando “inicia a prestação em território nacional por meio de atos preparatórios anteriores à realização material do serviço, relacionados com o planejamento, a identificação da expertise indispensável ou a mobilização de recursos materiais e intelectuais necessários ao fornecimento”.

Já no que concerne ao item (ii), acima, o PN estabelece que o tomador atua no mercado estrangeiro quando “a demanda pela prestação ocorre no exterior, devendo ser satisfeita fora do território nacional”.

E assim resume as premissas em que se baseia: “o tomador do serviço atua naquele mercado onde residem suas motivações para buscar a prestação, enquanto que o prestador atua a partir do mercado onde inicia (prepara) o seu suprimento, cujo fim será satisfazer à demanda que motivou sua contratação”.

Confere-se, assim, particular relevância à localização do mercado onde o tomador do serviço atua, que não necessariamente coincidirá com o local da sua residência/domicílio.

Com fundamento nessas considerações, o PN classificou os serviços em três categorias distintas para fins de definição do local onde a demanda do tomador é atendida, para fins de caracterização da exportação de serviços:

1) Serviços Executados em Bens Imóveis ou em Bens Móveis Incorporados a Bens Imóveis – Demanda se considera atendida no local onde se situa o imóvel. Exemplo: projetos arquitetônicos para realização de obras em imóvel situado no exterior (serviço que, embora prestado no Brasil, “se adere” ao imóvel no exterior, configurando exportação).

2) Serviços Executados em Bens Móveis não Incorporados a Bens Imóveis cuja Utilização se Dará Apenas no Exterior – Demanda se considera atendida no(s) local(is) onde o bem deverá ser utilizado, desde que comprovado o emprego exclusivo no exterior. Exemplo: reparo ou manutenção de turbinas de aeronaves, caso em que a existência de exportação dependerá de comprovação documental de que as aeronaves a que se destinam as turbinas operam exclusivamente em rotas estrangeiras.

3) Serviços Executados em Bens Móveis sem Conexão com Determinado Território, ou Executados sem Referimento a um Bem Físico – Localização final do serviço deve ser verificada caso a caso, levando-se em conta as seguintes variáveis:
(a) quando uma parte relevante da prestação deva se realizar necessariamente em determinado local com a presença física do prestador, considera-se atendida a demanda naquele local (exemplo: aplicação de recursos de terceiros em títulos mobiliários, negociados em determinada Bolsa de Valores).
(b) Quando, embora dispensada a presença física do prestador, for necessária sua presença indireta (por subcontratação) ou virtual (pelo acesso compulsório a serviços eletrônicos locais sem os quais se tornaria obrigatória sua presença física direta ou indireta), considera-se atendida a demanda onde sua presença indireta ou virtual for indispensável. Exemplo: Consultoria de investimentos sem a presença física do prestador, mas realizada a partir do acesso eletrônico a serviços locais de bancos de dados ou da análise de mercado feita por experts locais); e
(c) Não havendo qualquer elemento de conexão territorial relacionado com o resultado da prestação, considera-se atendida a demanda no local onde o tomador tem sua residência ou domicílio.

O PN excepciona desse conceito geral os casos em que a legislação específica dispuser em sentido contrário, e definir a exportação de serviços de forma diversa. É o caso, por exemplo, das contribuições do PIS/Cofins, em que a legislação infraconstitucional exigiu, como pressuposto de aplicação da desoneração fiscal, que houvesse “prestação de serviços para pessoa física ou jurídica residente ou domiciliada no exterior, cujo pagamento represente ingresso de divisas”. Essa legislação se apoiou, portanto, em parâmetros que não refletem os adotados pelo PN, e assim se manterá, como tem que ser.

Ressalve-se que as definições de exportação de serviço constantes do PN merecem críticas e reparos — principalmente as definidas no item 3, relativo a “Serviços Executados em Bens Móveis sem Conexão com Determinado Território, ou Executados sem Referimento a um Bem Físico” —, mas eu só os abordarei em outra oportunidade, tendo em vista já estar esgotado o espaço desta coluna.

Por ora, gostaria simplesmente de enaltecer, como já o fiz, a iniciativa da Cosit em buscar definir e uniformizar o entendimento da Fazenda, e tornar pública as suas conclusões sobre a matéria. Todas as iniciativas que sejam em prol de maior segurança jurídica serão sempre muito bem-vindas.

Gustavo Brigagão é sócio do escritório Brigagão, Duque Estrada, Emery – Advogados; presidente da Associação Brasileira de Direito Financeiro (ABDF); membro do Comitê Executivo da International Fiscal Association (IFA); presidente da Câmara Britânica do Rio de Janeiro (BRITCHAM-RJ); conselheiro da OAB-RJ; diretor de Relações Internacionais do Centro de Estudos das Sociedades de Advogados (Cesa); diretor da Federação das Câmaras de Comércio do Exterior (FCCE); e professor em cursos de pós-graduação na Fundação Getulio Vargas.

Fonte: Revista Consultor Jurídico

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