Condução da pauta ambiental dificulta as negociações com a UE, aponta Miguel Daoud
Uma das referências nacionais quando o assunto é o agronegócio, o administrador de empresas e consultor Miguel Daoud não esconde apreensões quando fala sobre o texto do acordo comercial entre o Mercosul e a União Europeia. Comentarista há mais de 10 anos do Canal Rural, ele lamenta a forma como a questão ambiental tem sido conduzida.
Agência Senado — Como o senhor avalia a questão ambiental no acordo Mercosul-UE e toda a polêmica causada pelo aumento do desmatamento no Brasil?
Daoud — Está tudo péssimo. Vamos ser claros, o Brasil não ganha quando questões ambientais são amarradas nestes acordos. Temos a maior floresta do mundo e 68% das matas nativas são preservadas. A maneira como este assunto vem sendo conduzida é muito prejudicial. Viajo muito pela Amazônia e o fato é que todos os agentes públicos devem avaliar acerca da legalidade do que ocorre lá. O Código Florestal (Lei 12.651, de 2012) permite a utilização de parte da propriedade. O bioma amazônico é enorme e é de nosso interesse esclarecer, com dados confiáveis, acerca da legalidade disso tudo.
Quando o Brasil, de bate-pronto, afirmou que não havia o desmatamento, quando todos os dados explicitavam esta questão, isso também é negativo. Este tipo de atitude é arriscada. Recentemente, os produtores de celulose, por exemplo, demonstraram de forma cabal que toda a produção provém de floresta replantada. Então, esse embate precisa ser muito esclarecido. É evidente que não devemos nos curvar a certas considerações, mas temos que combater com dados.
É importante levarmos em conta também que a expansão da agricultura não está nada fácil, devido à elevação dos custos. E se há o desmatamento ilegal, ele deve, sim, ser rigorosamente combatido, deixo isso claro.
Desde que o acordo foi assinado, alguns setores do agronegócio, como os lácteos e o vinícola, têm reclamado. Quais setores são mais desafiados?
Daoud — Depois de 20 anos de negociações, a princípio, quando um acordo desta relevância é fechado, ele é celebrado até com alguma euforia. O acordo foi desejado por nós também, mas por enquanto ainda se encontra em fase incipiente. E temos que avaliar criticamente todos os pontos. Até mesmo a participação da Argentina no acordo, diante da situação em que se encontra, abre dúvidas se eles tratarão o tema com tanta prioridade.
Além disso, a agropecuária brasileira passa por uma crise grave, porque os custos subiram muito. Outros setores de grande relevância, como arroz e trigo, já estão inviáveis e mesmo o café também pode entrar nessa rota. E, dependendo do que for feito ou não em termos de reforma tributária, até a soja e o milho podem se tornar inviáveis também.
Detalhe um pouco mais, então, as vantagens e desvantagens que você percebe nesse acordo por enquanto.
Daoud — Vamos às vantagens primeiro. Somos muito competitivos na produção de grãos, por exemplo, devido ao avanço tecnológico.
Mas já nos lácteos, não somos nada competitivos. A UE despeja U$ 110 bilhões por ano como subsídios a seus produtores nesse campo, e isso faz toda a diferença. Descompensa a balança pra nós. Uma teoria diz que isso vai nos obrigar a nos reinventarmos, mas eu não acredito muito nisso. Não consigo perceber vantagens, especialmente pro setor de lácteos.
Por outro lado, desde que o acordo foi divulgado, especialmente os agricultores da França estiveram entre os que mais protestaram. Porque isso ocorre? Você avalia que eles têm força pra barrar o acordo?
Daoud — Vejo essa resistência, especialmente da França, como uma coisa mais política que econômica. Se você for ver onde eles são mais fortes, é justamente onde temos nossos maiores gargalos. O custo de produção da tonelada do leite em pó, por exemplo, é de US$ 4 mil aqui contra US$ 3 mil na França. Ou seja, precisamos evoluir muito pra ficarmos competitivos.
Então, a resistência deles é mais política. Deve se dar pelo receio da perda de mercado em alguns setores. E isso nos obriga a revisarmos nossos conceitos. Nossa agricultura não é subsidiada, chegamos aonde chegamos pelos investimentos em tecnologia. Mas essa resistência política deles é relevante, e pode também criar mais dificuldades ainda pra nós.
Então, se dependesse só de você, o Brasil prosseguiria ou não com as negociações até o fim?
Daoud — Veja bem, não posso, a princípio, ser contra negociações que visem à abertura de mercados. Apenas pondero que o governo do Brasil precisa ser muito cuidadoso até a formatação final do texto, porque senão vão despejar o caminhão todo em cima da gente. Porque não temos competitividade.
Nossa carga tributária é muito alta, a deficiência logística é enorme e não temos estabilidade de moeda que garanta a paridade de troca. Se estes pontos não forem observados, podemos, sim, ser prejudicados. É só isso que eu pondero.
Temos que ver a liberação de tarifas com muito cuidado, sermos gradativos e parcimoniosos. Esse é um dos pontos que mais me preocupa. Como eu disse antes, 5 milhões de pessoas neste país dependem da cadeia de lácteos, só pra ficar nesse exemplo. Esses milhões de pequenos proprietários já estão parando as atividades, porque, acredite em mim, está tudo muito difícil. Se não houver uma proteção para esse setor, vai ser péssimo.
Fonte: Agência Senado