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O Estado não deve ter papel direto na criação de infraestrutura de transportes

Boa parte da transição de estagnação para crescimento no final do século XIX se deve à expansão da malha ferroviária de 1850 a 1910. Essa é a conclusão do professor do Instituto de América Latina da Universidade da Califórnia (UCLA), William Summerhill.

O pesquisador, autor do livro Trilhos do Desenvolvimento: As Ferrovias no Crescimento da Economia Brasileira 1854-1913, se debruçou em pesquisas a respeito da situação econômica do país na transição do século XIX para o XX a partir de um questionamento principal: se o Brasil sempre foi abundante em recursos naturais e com economia relativamente estável, por que não registrou taxa de crescimento relevante durante o século XIX?

A explicação, segundo ele, foi a falta de uma malha ferroviária que pudesse reduzir “distâncias econômicas” à sociedade. O autor atribui o crescimento econômico de uma média de 4,5% ao ano no século XX, segundo estudo do Iedi (Instituto de Estudos sobre Desenvolvimento Industria), à expansão do número de ferrovias.

“Melhoramentos em transporte reduzem o custo de transporte para toda a sociedade. O resultado é um aumento na produtividade agregada, porque é preciso menos insumos – de capitais e mão de obra – para produzir um nível determinado de serviços de transporte”, afirmou Summerhill, em entrevista ao JOTA.

Segundo o autor, o Brasil tinha 25 mil quilômetros de ferrovias em operação até 1913. Ele aponta que hoje, no entanto, esse número é ainda menor: nem metade dos quase 30 mil quilômetros atuais está funcionando.

Summerhill também indica que o setor ferroviário brasileiro, a partir do século XX, “virou caricatura de estatal ineficiente”. O pesquisador acredita que o Estado não deve exercer papel direto na capacitação de criação de transportes. “O que é preciso é estabelecer um ambiente propício para projetos que invistam em novas capacidades”, diz.

Leia a entrevista completa abaixo.

De onde surgiu o seu interesse pelo sistema ferroviário brasileiro?

Eu tinha pouco interesse, no início, na questão de ferrovias em si. O que me interessava era a questão do crescimento econômico – ou seja, para o Brasil, a falta de crescimento – no século XIX. Era um século de estagnação econômica no Brasil, e o desafio para investigadores modernos era tentar entender como um país com recursos naturais e relativa estabilidade econômica não conseguiu fazer crescer o Produto Interno Bruto (PIB) por capita durante quase um século. Uma resposta comum era culpar a escravidão pelo atraso econômico. O problema com esse argumento é que o sul dos EUA tinha mais escravos do que o Brasil, e, mesmo assim, tinha produtividade bem mais elevada. Seguindo algumas observações de outros pesquisadores, investiguei se os custos de transportes pré-ferrovia no Brasil eram indicativos relevantes para explicar uma parcela desse atraso econômico. E a resposta foi positiva.

Quais são as principais diferenças entre o modelo de infraestrutura que o senhor analisou no século XIX e hoje em dia?

Uma diferença chocante para mim é que, até o final do período que eu investiguei, que data o ano de 1913, o Brasil tinha mais quilômetros de ferrovia em operação do que tem hoje. Na época, havia 25 mil quilômetros funcionando e, hoje, 30 mil, mas nem metade está efetivamente funcionando.

Por que o mercado externo decidiu investir no Brasil na época para a construção de novas ferrovias? Há algo de semelhante com o contexto atual?

Convencer capitalistas de que o Brasil era um lugar que valia a pena investir exigia um compromisso crível de não expropriar [os empreendimentos]. O Estado Imperial conquistou isso por nunca ter dado calote na dívida [pública]. No final da década de 1850, o governo começou a oferecer um piso garantido na taxa de retorno aos investimentos em projetos de ferrovia. A promessa do governo de pagar se as rendas nos projetos de ferrovias caíssem abaixo dos custos era levada a sério pelo mercado externo. E pelo mercado interno também.

Na época estudada pelo seu livro, o investimento era auxiliado por uma política de governo que garantia uma taxa mínima para os lucros das companhias ferroviárias. O senhor vê, hoje, uma preocupação com o setor privado nos modelos de contrato?

Não acompanho os modelos de contrato de hoje em dia. Mas, para mim, fica óbvio que contratos têm de oferecer oportunidades suficientes para atrair financiamento. Sem eles, não haverá projetos. A taxa de poupança privada no Brasil é tão baixa que exige poupança de fora para fazer o investimento necessário para crescer. Contratos têm de concorrer com as oportunidades globais para esses capitais disponíveis.

De que forma o Estado pode participar dos investimentos em infraestrutura? Ele tem condições de ser um gestor eficiente?

O setor ferroviário progressivamente ficava nas mãos do Estado ao longo do período que estudei, e depois, na segunda metade do século XX, virou caricatura de estatal ineficiente. E recebeu cada vez menos interesse do governo. Deu o que deu agora no Brasil: uma falta considerável de capacidade ferroviária. O contexto agora é diferente. O Estado luta para reconquistar a credibilidade no mercado perdida há mais de cem anos. O Estado não deve exercer papel direto na criação de infraestrutura de transportes. O que é preciso é estabelecer um ambiente propício para projetos que invistam em novas capacidades. Há um elemento macro, de estabilidade fiscal e monetária, e um elemento micro, de regras claras para concessões e marco regulatório transparente.

O que o Brasil de hoje pode aprender com o período de crescimento do século XIX?

Que, infelizmente, é possível ter um século perdido. Preocupações agora com uma década perdida podem ser, ironicamente, positivas para o atual momento.

Qual é a relevância do fator da segurança jurídica para o investimento externo em infraestrutura?

Fundamental. Ao investir, o capital financeiro se transforma em capital físico. E a grande parte fica fixa e, por isso, altamente exposta às possíveis predações pelo governo. Segurança jurídica tem uma importância enorme, do início do projeto até o fim.

Como os marcos regulatórios podem afetar decisões de investimento em infraestrutura no Brasil?

Os marcos regulatórios são fundamentais porque estruturam o ambiente em que os projetos são propostos e implementados. Em um país que carece de transporte ferroviário, é importante estabelecer marcos que harmonizam a necessidade de conseguir um retorno competitivo para investidores com os benefícios para usuários – exatamente como conseguiu no século XIX.

O senhor enxerga algum modelo semelhante, no século XIX, aos marcos regulatórios de hoje?

Posso dizer que, no século XIX, a regulação era integral de atrair investimento e, ao mesmo tempo, segurar o benefício para a economia brasileira. Se a política de subsídio contingente criou um piso para o retorno ao investidor, a política de regulação de tarifas colocou um teto no retorno.

Existe uma relação direta entre investimento em infraestrutura de transporte e ganho de produtividade?

Absolutamente. Melhoramentos em transporte reduzem o custo de transporte para toda a sociedade. O resultado é um aumento na produtividade agregada, porque é preciso menos insumos – de capitais e mão de obra – para produzir um nível determinado de serviços de transporte. Melhoramentos em transporte são uma fonte importante de crescimento econômico.

Uma situação frequente no Brasil é a forte presença de uma exposição cambial que, em última análise, pode fazer com que o custo do risco incida na tarifa. A experiência histórica observada pelo senhor aponta alguma solução para que isso não ocorra?

Se o serviço de transporte pudesse ser providenciado com insumos domésticos, o cambio não importaria muito, obviamente. Mas esse não era o caso no passado. No século XIX, quando a moeda (o mil-réis) estava fraca, o governo tinha de pagar mais nas garantias de taxa mínima de lucro, e as empresas pagaram mais na importação de vagões, locomotivas, carvão e outros insumos. A depreciação do câmbio na década de 1890 era tal que, no começo do século XX, o governo acabou “encampando” ou “resgatando” várias linhas que cronicamente precisavam da garantia para economizar. A culpa disso era uma piora transitória no setor cafeeiro na década de 1890, exacerbada por uma mistura de déficit fiscal e emissão monetária excessiva, que piorou o câmbio. A melhor medida contra essa volatilidade e fraqueza é um leque de politicas macroeconômicas virtuosas que reduzam a vulnerabilidade externa.

Que políticas o próximo presidente da República deveria implementar para que o país retome o crescimento?

O próximo presidente deve enfatizar políticas que garantam o balanço fiscal e estabilidade macroeconômica, porque isso importa muito para atrair mais capital para o país. A reforma da Previdência também é importante. O novo governo deve fazer as reformas de “segunda geração”, que deviam ter sido implementadas após a conquista da estabilidade monetária, na segunda metade da década de 90, mas que deixaram de ser feitas. Reformas como a do sistema tributário, a retirada de entraves burocráticos para a formação de empresas novas. Deve também fazer uma real abertura ao comércio exterior sem tanta proteção, que atrapalha a produtividade, esclarecendo e garantindo direitos de propriedade. Políticas econômicas a favor de concorrência, inovação e do mercado devem ser seguidas.

Fonte: Portal Jota