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Postado em 25 de maio de 2020 | 17:23

Rejeição ao transporte público alivia montadoras

Rebecca Coleman não tinha um carro desde 1999. Mas no começo de março, com a pandemia do coronavírus começando a se abater sobre Nova York, ela e sua companheira ficaram mais temerosas de usar o transporte público e compraram um Honda de uma concessionária no bairro do Queens, via chat de vídeo.

“Eu não queria um carro”, diz ela, “mas precisava de um para visitar com segurança a família que vive fora da cidade”. “Basicamente, eu cedi em tudo que jamais cedi. Acho que ambas fizemos isso.”

Com as montadoras do mundo todo enfrentando um quase colapso das vendas, e meses de incertezas mesmo antes de elas reiniciarem o trabalho em suas fábricas, o caso de Coleman representa uma centelha de esperança para um setor pego em cheio pela pandemia.

Durante anos as montadoras observaram inquietas as taxas de licenciamento de veículos caírem entre as populações mais jovens e urbanas, na medida em que um transporte público melhor e a onipresença crescente dos serviços de aplicativos de transporte minaram o apelo da posse de um carro particular.

Em resposta, fabricantes como a General Motors (GM) e a Daimler da Alemanha investiram bilhões de dólares em novos serviços de táxi, compartilhamento de carros ou na opção de poder acessar veículos sem o inconveniente de ter de comprá-los.

Mas a covid-19 pode ter mudado essa maré. Sinais vindos da China, que saiu do confinamento (“lockdown”) quando a Europa e as Américas entravam nos seus, são de um grande aumento no uso dos automóveis, com as pessoas evitando usar o transporte público.

“No mês que se seguiu ao grande impacto do coronavírus na China, houve uma queda muito grande no interesse pelo transporte público”, afirma Jürgen Stackman, diretor de promoção de marca da Volkswagen (VW).

Na metade de abril, os congestionamentos nas grandes cidades chinesas estavam em 90% dos níveis pré-lockdown, enquanto que a taxa de utilização do metrô estava em apenas 50%, segundo números da consultoria Bernstein.

“Suspeitamos que a mudança recente entre os consumidores chineses em favor do transporte privado vai persistir enquanto persistirem os temores com a covid-19”, escreveu Robin Zhu, analista automobilístico da Bernstein baseado em Hong Kong.

As vendas no país se recuperaram mais rapidamente do que qualquer um ousaria prever, alavancadas em parte pelas preocupações com a saúde. A Volvo informou que suas vendas na China estão 20% maiores do que em 2019, enquanto que o mercado como um todo cresceu 4,4% em abril em relação ao mesmo período do ano passado.

A dúvida é se o ritmo chinês de recuperação poderá se repetir nos países da Europa e América do Norte

Os executivos do setor não têm ilusões quanto aos ventos desfavoráveis que enfrentam. No mínimo, as economias mais desenvolvidas se deparam com uma grande recessão; na pior hipótese, uma recessão prolongada, com novos surtos do coronavírus paralisando novamente as economias. Mas os sinais de mudanças nas atitudes dos consumidores em relação aos automóveis poderão protegê-las das piores consequências da recessão econômica.

“Temos uma coisa que você poderia até chamar de compra por vingança”, disse o presidente executivo da Volvo, Hakan Samuelson, em uma conferência promovida recentemente pelo ” Financial Times “. “As pessoas estão realmente cansadas de ficar presas em casa e querem sair e comprar.”

Executivos de marketing entraram em ação para capitalizar a preocupação com o uso do transporte público. Um anúncio publicado recentemente em um jornal da Alemanha por uma concessionária, mostrava uma enorme máscara facial amarrada na frente de um VW Tiguan, com cada alça de orelha presa em um espelho retrovisor. “A segurança em primeiro lugar”, dizia o texto do anúncio em letras grandes em negrito.

A potência do motor ou o conforto antes comandavam as vendas, mas agora as preocupações com a saúde têm prioridade. A subsidiária da Ford na China usou o “lockdown” para redesenhar os sistemas de filtros de ar de seus veículos. Embora não aleguem barrar o vírus, eles oferecem uma maior proteção da poluição e outras partículas em suspensão que acabam entrando dentro dos automóveis. Assim que as concessionárias foram reabertas, a marca vendeu 40.000 sistemas quase que instantaneamente, incluindo números significativos de atualizações.

A dúvida é se o ritmo chinês de recuperação poderá se repetir na Europa e América do Norte. Apesar da queda abrupta das vendas em abril, quando revendedores e fábricas foram fechados, há algumas evidências de uma demanda reprimida entre os compradores de automóveis.

No Reino Unido, o interesse pela compra de carros aumentou desde que Boris Johnson anunciou, no começo de março, um pequeno afrouxamento nas regras de confinamento. Todos os que retornaram ao trabalho foram exortados pelo primeiro-ministro a “evitar o transporte público o máximo possível”- uma frase que fez brilhar os olhos das concessionárias que haviam sido forçadas a fechar seus “showrooms” oito semanas antes.

O tráfego no Auto Trader, o mercado on-line de automóveis do Reino Unido, atingiu um pico no dia do pronunciamento, registrando mais de 1 milhão de visualizações, o maior número desde o começo do confinamento.

Na Citygate Automotive, que opera 13 “showrooms” na zona oeste de Londres e em Berkshire, o que começou como encomendas discretas nas horas que se seguiram ao pronunciamento transformou-se numa torrente. “O mundo acordou de uma situação dramática”, diz o principal executivo da companhia, Jonathan Smith.

Até o fim desta semana, a companhia espera retornar aos níveis de encomendas pré-confinamento, mesmo ainda não tendo reaberto nenhum “showroom”, embora a maior parte das encomendas se refiram a carros usados.

Mais da metade dos motoristas habilitados do Reino Unido que não têm carro consideram agora comprar um

Robert Forrester, que comanda o grupo de concessionárias Vertu Motors, de capital aberto e que opera em quase 100 locais na Inglaterra, vem monitorando as encomendas nesse momento difícil. “Estamos cada vez mais de volta aos negócios, armados de máscaras feitas pela minha mãe. Mal posso esperar”, escreveu ele no Twitter.

Uma pesquisa recente da Auto Trader constatou que mais da metade dos portadores de carteira de habilitação do Reino Unido que não têm carro estão considerando comprar um para evitar usar o transporte público depois que o “lockdown” terminar.

Um padrão parecido vem surgindo nos EUA. Um quinto das 3.000 pessoas consultados na metade de março pela Cars.com, uma empresa de Chicago que vende assinaturas para concessionárias americanas de automóveis para elas listarem seus estoques, disseram estar considerando a compra de um automóvel por causa da covid-19.

Cerca de 43% dos participantes disseram que pararam de usar o transporte público, quase a mesma porcentagem daqueles que estão fazendo menos viagens compartilhadas.

“A pandemia poderá reverter as tendências de longo prazo de não-posse entre os consumidores mais jovens, 35% dos quais afirmam estar interessados em comprar um carro”, afirma Markus Winkler, diretor da consultoria automotiva Capgemini.

Embora as montadoras estejam tendo agora a oportunidade de criar uma nova base de clientes leais, ele afirma que elas precisarão adorar uma nova abordagem. “Quase 80% das pessoas entre os 25 e os 35 anos nunca tiveram um carro, de modo que as mensagens tradicionais baseadas no conhecimento complexo de outros produtos do mercado não vão necessariamente funcionar”, acrescenta ele.

Nos Estados Unidos, sete vezes mais pessoas pesquisaram na internet a expressão “é um bom momento para comprar um carro?” entre 15 e 21 de março, do que durante a mesma semana do ano passado, mesmo com as orientações de ficar em casa forçando os revendedores a fecharem as portas.

O confinamento também não conseguiu deter os compradores mais pertinazes. Jordan Jeong e sua noiva compraram um segundo carro por causa da pandemia, assinando a papelada em seu apartamento depois que a revendedora entregou o carro, enquanto o representante de vendas mantinha uma distância de dois metros dos dois.

“Foi bem fácil”, diz ele, dado o preço. “A maior ansiedade em comprar um carro sem vê-lo de antemão é: será que estou sendo enganado?”

No curto prazo, a decisão é transformadora. O percurso de 75 minutos por metrô de sua casa no Brooklyn até o hospital em que trabalha como médico no pronto-socorro, foi reduzido para meia hora de carro. “Tem sido surreal dirigir por Nova York sem nenhum trânsito”, diz ele.

Nos casos em que as pessoas não estão conseguindo comprar carros – mesmo os modelos mais baratos ou usados -, elas estão usando outros serviços para ter acesso a veículos particulares.

A Zipcar, o serviço de compartilhamento controlado pela locadora Avis, registrou um aumento na demanda em cidades americanas após um recurso dedicado que oferece o uso exclusivo de um veículo por vários dias de uma vez.

“No passado, a Zipcar não atuou como uma opção de transporte entre os subúrbios e os centros das cidades”, disse a presidente da companhia, Tracey Zhen, ao “Financial Times”. “Acreditamos que mais pessoas vão querer acesso exclusivo  a um veículo para uso de curto prazo, o que estamos prontos para fornecer.”

No Japão, as preocupações com o transporte público despertaram o interesse nas assinaturas de carros – uma tendência relativamente nova que não vinha ganhando muita força antes da pandemia. A Idom, uma das maiores revendedoras de carros usados do país, lançou em fevereiro um serviço de assinaturas mensais de US$ 280 e os pedidos dobraram em apenas dois meses.

A demanda tem sido particularmente vigorosa da parte de profissionais da medicina e mulheres que precisam de transporte diário para supermercados e escolas. Antes da pandemia, 70% de seus assinantes eram homens.

Naoki Yamahata, gerente encarregado do serviço de assinaturas da Idom, diz que os obstáculos financeiros à posse de um carro continuam altos no Japão. “As pessoas estão buscando um serviço que permita a elas ter a posse parcial de um automóvel sem os riscos de ter um patrimônio e essa demanda foi alimentada pelo coronavírus”, afirma Yamahata. “O serviço de assinatura preenche as necessidades que ficam entre a posse de um carro e a locação ou compartilhamento desse bem.”

Nas últimas três semanas, a startup alemã Cluno registrou um aumento de 53% nas assinaturas de seu serviço. “Apesar da enorme incerteza econômica entre muitos clientes, retornamos ao patamar pré-coronavírus e a tendência está ganhando força.”

No entanto, à medida que mais pessoas voltam ao trabalho e as estradas se entopem novamente, a disposição de ficar preso no trânsito pode diminuir. As cidades passaram anos dissuadindo os motoristas, implementando esquemas de pedágio para o acesso às regiões centrais das cidades e transformando espaços das vias públicas em ciclovias. “Nas grandes cidades, o carro particular não é realmente um conceito muito prático”, afirma Samuelsson.

Nesta semana, Londres restabeleceu a taxa de congestionamento por dirigir no centro da cidade, anunciando um aumento da cobrança e apresentando planos para livrar algumas vias centrais dos automóveis.

Christian Dahlheim, diretor global de vendas da Volkswagen, diz que o impulso para os carros “provavelmente não” é uma mudança de longo prazo. “Obviamente, é impensável substituir o transporte público por transporte individual nas principais cidades”, diz ele. “Mas acreditamos que isso pode impulsionar a demanda no curto prazo.”

Embora o aumento do interesse no centro da cidade possa durar pouco, outras mudanças serão permanentes. Uma delas é a mudança para as compras online. Quando Coleman comprou um Honda para a família em Nova York, ela fez isso sem visitar uma concessionária ou fazer um “test drive”. Em vez disso, um representante de vendas exibiu o carro em uma ligação do FaceTime.

“Antecipo que o [marketing virtual] chegou para ficar”, diz o gerente geral da concessionária, Brian Benstock.

Há um ano, as transações online representavam 7% das vendas, diz ele. Agora que elas são 100%, Benstock diz acreditar que os juros continuarão altos mesmo depois que Nova York aliviar seu “lockdown”.

“A pasta de dente está fora do tubo”, afirma ele. “É mais fácil.”

Na China, muitas das 2.000 concessionárias da Volkswagen passaram a transmitir ao vivo a partir de salas de exposição em plataformas como TikTok ou Kuaishou, depois que a empresa treinou mais de 70.000 pessoas para se comunicar on-line em fevereiro.

“Os vendedores de carros estão se tornando artistas”, diz Michael Mayer, diretor de vendas da VW no país, acrescentando que mesmo os clientes que compraram carros on-line queriam alguma forma de interação humana no final do processo.

Um dos maiores problemas da crise do coronavírus para a indústria será o impacto na demanda por veículos elétricos. Encorajada pelo ar mais limpo, que ficou evidente durante o confinamento, a mudança em direção aos carros elétricos pode ser acelerada.

“Há muitas pessoas muito mais felizes com o ar limpo e o céu azul”, afirma Doug Parr, cientista-chefe do Greenpeace no Reino Unido. “Existe um sentimento muito amplo de que queremos fazer algo um pouco diferente quando nos recuperarmos”, comenta.

Samuelsson, da Volvo, acredita que a eletrificação será mais rápida. “Eu acho que seria ingênuo acreditar que nossos clientes voltarão a um showroom pedindo carros a diesel”, diz ele.

Embora os carros elétricos continuem sendo mais caros para comprar, o executivo-chefe da BMW, Oliver Zipse, acredita que os consumidores serão conquistados pelos baixos custos de operação, apesar dos preços mais baixos da gasolina.

“Até hoje, em muitos casos, os veículos elétricos já oferecem uma vantagem total no custo de propriedade, cada vez mais percebida pelos clientes”, diz ele.

No cenário atual, o setor agarrará qualquer alívio que conseguir. As vendas globais devem cair um quinto neste ano, segundo estimativas que ainda preveem uma recuperação em grandes mercados nos próximos meses.

As montadoras enfrentavam um ano de testes em 2020 mesmo antes da pandemia, com uma demanda mais fraca na China e regras rígidas de emissão de dióxido de carbono na Europa, forçando-as a vender carros elétricos com margens pequenas e um número menor dos lucrativos veículos utilitários esportivos.

O desafio imediato para os executivos do setor é convencer os consumidores a fazerem o que costuma ser sua segunda maior compra, em meio a uma profunda recessão. Para isso, estão implementando esquemas usados após a crise financeira anterior, incluindo o seguro-desemprego, que protegia os proprietários de carros novos contra a incapacidade de cumprir os pagamentos.

No entanto, a indústria está dividida sobre se os incentivos do governo para comprar carros devem se concentrar em impulsionar o apelo dos carros elétricos, ou simplesmente em tentar recuperar o volume em todo o setor.

Samuelsson diz que “seria um desperdício de dinheiro” incentivar a compra de carros do “velho mundo”. “Eles deveriam usar o dinheiro para promover novas tecnologias, como planejavam fazer antes.”

“Para incentivar a compra de um carro ou caminhão, isso é sempre algo de curto prazo”, diz Martin Daum, membro do conselho da Daimler. Em vez disso, os governos têm “uma oportunidade única de apoiar a construção da infraestrutura”, como pontos de cobrança.

Seja com convertidos relutantes do transporte público ou partidários ávidos da gasolina ansiosos por comprar o modelo mais recente, a indústria ficará grata por qualquer forma de recuperação, após ter registrado um início de ano desastroso.

“Realmente espero que seja este o caso, porque qualquer outra coisa seria, obviamente, um desastre para os nossos negócios”, afirma Samuelsson. “Se isso desencadear um ano de recessão ou algo assim, será preciso redesenhar tudo.”

 

Fonte: Valor Econômico


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