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Postado em 11 de março de 2021 | 17:07

‘Eu nunca vi nada assim’: O caos chega ao frete global

No mar da costa de Los Angeles, mais de duas dezenas de navios de contêineres repletos de bicicletas ergométricas, eletrônicos e outros cobiçados produtos importados estão parados há até duas semanas.

Em Kansas City, agricultores estão com dificuldades para enviar soja a clientes na Ásia. Na China, móveis destinados à América do Norte se acumulam nas fábricas.

Em todo o planeta, a pandemia prejudicou o comércio em um grau extraordinário, elevando o custo de frete das mercadorias e adicionando um novo desafio à recuperação da economia global. O vírus causou confusão na coreografia das cargas enviadas de um continente a outro. No centro da tempestade está o frete de contêineres, a força-motriz da globalização.

Os americanos confinados em suas casas provocaram uma elevação nos pedidos às fábricas da China, e muitas dessas mercadorias são transportadas pelo Pacífico em contêineres – as enormes caixas metálicas que transportam produtos, empilhadas sobre pesadas embarcações. Enquanto os lares americanos encheram os quartos com móveis de escritório e os porões com esteiras ergométricas, a demanda por frete superou a disponibilidade de contêineres na Ásia, provocando uma escassez no continente no mesmo momento em que os compartimentos se acumulam em portos americanos.

Contêineres que levaram milhões de máscaras a países da África e da América do Sul no início da pandemia continuam por lá, vazios e abandonados, porque as empresas transportadoras de cargas concentraram suas embarcações nas rotas mais populares – que ligam a América do Norte e a Europa à Ásia.

E, nos portos que recebem os navios, repletos de mercadorias para descarregar, as embarcações ficam frequentemente encalhadas por dias, em engarrafamentos de trânsito marítimo. A pandemia e suas restrições limitaram a disponibilidade de trabalhadores de docas e caminhoneiros, causando atrasos no transportes de cargas que são sentidos do sul da Califórnia até Cingapura. Todo contêiner que não pode ser descarregado em um local é um contêiner que não poderá ser carregado em outro lugar.

“Eu nunca vi nada assim”, afirmou Lars Mikael Jensen, diretor para Integração Oceânica Global da A.P. Moller-Maersk, a maior transportadora de cargas do mundo. “Todos os eixos da cadeia de abastecimento estão sobrecarregados. Os navios, os caminhões, os armazéns.”
Economias de todo o mundo estão sofrendo com as oscilações causadas pelas perturbações nos mares. Custos mais elevados no transporte de grãos e soja dos EUA pelo Pacífico ameaçam elevar o preço da comida na Ásia.

Contêineres vazios estão estacionados em portos da Austrália e da Nova Zelândia; contêineres são escassos no porto indiano de Calcutá, forçando fabricantes de componentes para produtos eletrônicos a enviar sua mercadoria de caminhão para o porto de Mumbai, 1,6 mil quilômetros a oeste, onde a cadeia de abastecimento funciona melhor.

Exportadores de arroz da Tailândia, do Vietnã e do Camboja estão suspendendo alguns carregamentos destinados à América do Norte por causa da impossibilidade de conseguir contêineres.

O caos nos mares ocasionou uma bonança entre empresas de transporte de cargas como a Maersk, que, em fevereiro, citou um crescimento recorde nos preços do frete ao informar um ganho de mais de US$ 2,7 bilhões no faturamento não tributado nos últimos três meses de 2020.

Ninguém sabe por quanto tempo esse transtorno durará, ainda que alguns especialistas estimem que os contêineres continuarão escassos até o fim do ano, enquanto as fábricas que os produzem – quase todas na China – se apressam para acompanhar a demanda.

Produção de máscaras
Desde que começaram a ser utilizados, em 1956, os contêineres revolucionaram o comércio, ao permitir que mercadorias fossem acomodadas em compartimentos de tamanho padronizado, que podem ser içados por guindastes e colocados sobre vagões de trens e caminhões – o que efetivamente diminuiu as distâncias.

Telas para eletrônicos feitas na Coreia do Sul chegam em contêineres às fábricas na China que montam smartphones e laptops – e em contêineres esses dispositivos acabados atravessam o Pacífico em direção aos Estados Unidos.

Qualquer obstáculo resulta em atrasos e custos extras para alguma parte. A pandemia prejudicou todas as etapas da jornada. “Todo mundo quer um monte de coisas”, afirmou Akhil Nair, vice-presidente para administração de frete global da SEKO Logistics, em Hong Kong. “A infraestrutura não consegue acompanhar.”

E assim tem início o caos
Mais de uma década atrás, durante a crise financeira global, empresas de frete foram devastadas. Enquanto um misterioso vírus emergia da China, no ano passado, fazendo com que o governo do país fechasse fábricas para evitar sua disseminação, a indústria de frete se preparou para uma reprise. Transportadoras cortaram serviços, paralisando muitas embarcações.

Em meio à crise, porém, aumentaram as encomendas de equipamentos de proteção como máscaras cirúrgicas e aventais usados pelas equipes médicas na linha de frente, produtos fabricados em grande parte na China. As fábricas chinesas aumentaram a produção, e navios de contêineres carregaram seus produtos a destinações em todo o planeta.
Ao contrário da crise financeira, quando a recuperação econômica demorou anos para ganhar força, as fábricas chinesas voltaram com tudo na segunda metade de 2020, ocasionando uma alta demanda por frete.

As transportadoras acionavam todas as suas embarcações, mas se concentraram nas rotas com maior demanda – especialmente entre a China e a América do Norte.

A pressão aumentou quando os americanos reformularam sua maneira de gastar. Privados de suas viagens de férias e refeições em restaurantes, eles passaram a comprar mais consoles de videogame e batedeiras de massas – e a reformar suas casas para o trabalho remoto e o ensino à distância.

A quantidade de equipamentos para exercícios físicos transportados por contêineres da Ásia para a América do Norte mais que dobrou entre setembro e novembro, em comparação com o mesmo período do ano anterior, de acordo com análise da Sea-Intelligence, uma empresa de pesquisas com base em Copenhague. Os carregamentos de fogões e utensílios de cozinha quase dobraram nesse período. O transporte de desinfetantes aumentou mais de 6.800%.

“Todo crescimento que ocorreu foi basicamente induzido pela pandemia”, afirmou Alan Murphy, fundador do grupo de pesquisa.

Porto de Oakland
Analisado de maneira ampla, o volume de comércio global teve queda de somente 1% em 2020 em comparação com o ano anterior. Mas esse número não reflete a maneira como o período se desdobrou – com uma queda de mais de 12% entre abril e maio seguida de uma retomada igualmente dramática. O sistema não conseguiu se ajustar, contêineres foram enviados a lugares errados, e os preços do frete alcançaram altas estratosféricas.

A empresa de Peter Baum em Nova York, a Baum-Essex, usa fábricas na China e no Sudeste Asiático para produzir guarda-chuvas para a Costco, sacolas de algodão para o Walmart e cerâmicas para a Bed Bath & Beyond. Seis meses atrás, ele pagava cerca de US$ 2,5 mil para enviar um contêiner de 12 metros para a Califórnia.

“Acabamos de pagar US$ 67 mil por isso”, afirmou ele. “É o maior preço de frete que já vi em 45 anos de negócios.”

O tráfego se acumula nos portos congestionados da Califórnia
Nos portos de Los Angeles e Long Beach, a descarga foi atrasada por uma escassez de trabalhadores de docas e caminhoneiros, enquanto o vírus deixou alguns doentes e forçou outros a fazer quarentena.

“Espera-se que a diminuição no volume continue até o começo do segundo semestre”, afirmou o diretor do porto de Los Angeles, Gene Seroka, em uma recente reunião de diretoria.

Produtores de grãos nos EUA
Os navios na costa de Los Angeles esgotaram os atracadouros disponíveis, tendo de apelar para as chamadas vagas de deriva – zonas em que eles podem flutuar livremente, como aviões que circulam aeroportos congestionados.

Grandes marcas de varejo – da fabricante de trajes esportivos Under Armour à Hasbro, a fabricante de jogos e brinquedos – estão lidando com gargalos no frete.

A Peloton aponta o congestionamento nos portos como um dos fatores por trás dos atrasos nas entregas das suas sofisticadas bicicletas ergométricas. Para diminuir a espera, a empresa elaborou planos para investir US$ 100 milhões em transporte aéreo e frete marítimo rápido.

Mas, mesmo em tempos de normalidade, o trecho de frete aéreo custa aproximadamente oito vezes mais do que o envio marítimo. A maior parte do transporte aéreo de cargas é feita em voos comerciais de passageiros. Com o transporte aéreo de passageiros gravemente retraído, a disponibilidade dos compartimentos de carga dos aviões também diminuiu.

Alguns exportadores rearranjaram suas rotas, enviando os produtos a Oakland, Califórnia, para depois seguirem para Los Angeles, 640 quilômetros ao sul. Mas os contêineres são arranjados nos navios de acordo com seu destino. Alguma mudança súbita de planos significa ter de mover os compartimentos como em uma partida de Jenga.

Ninguém sabe como isso vai acabar
Nas semanas recentes, navios de carga transportaram intensamente contêineres vazios para a Ásia, aumentando sua disponibilidade no continente, de acordo com dados da ContainerxChange, uma consultoria de Hamburgo, Alemanha.

Alguns especialistas assumem que, conforme a vacinação aumenta e a vida retornar eventualmente à normalidade, os americanos retomarão seus gastos habituais – de volta às experiências, no lugar das mercadorias – reduzindo a necessidade por contêineres.

Mesmo enquanto isso acontece, porém, os varejistas começarão a formar seus estoques para as vendas de fim de ano.

O plano de estímulo ao consumo que tramita no Congresso deve gerar contratações, que, por sua vez, ocasionarão outra onda de consumo, já que pessoas anteriormente sem emprego substituirão seus dispositivos eletrônicos desatualizados e renovarão seus guarda-roupas.

“Poderá haver uma outra subcategoria de consumidores totalmente diferente que não conseguia consumir antes”, afirmou Michael Brown, analista de contêineres da KBW, em Nova York. “Estamos potencialmente diante de um longo período de escassez.”

 

 

 

Fonte: Estadão


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