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Postado em 19 de setembro de 2019 | 18:01

Ecologia dá margem de manobra para protecionismo europeu, alerta cientista político

O cientista político Roberto Goulart, do Instituto de Relações Internacionais da Universidade de Brasília (UnB), é especialista na pesquisa e análise de processos de integração. É professor visitante da Johns Hopkins University (EUA), coordena o Núcleo de Estudos Latino-Americanos da UnB e chefiou o Núcleo de Estudos do Mercosul, também na UnB, entre 2013 e 2015.

Na entrevista à Agência Senado, Goulart relaciona as reivindicações ambientalistas dos europeus a margens de manobra para praticar o que chama de “protecionismo disfarçado”.

Agência Senado — Tem causado controvérsia o aumento das queimadas na Amazônia. O acordo Mercosul-UE é explícito, condiciona todos os países ao cumprimento das metas acertadas em acordos internacionais, como o Acordo de Paris sobre o clima. Então, como você analisa essa polêmica?

Goulart — As cláusulas ambientais e trabalhistas, que são de fato temas de enorme relevância social, são usadas pela União Europeia e pelos Estados Unidos nas negociações internacionais, para que haja possibilidades de impor barreiras não-tarifárias e cotas a determinados produtos de outros países dentro de seus mercados. Em resumo, é o bom e velho protecionismo.

Primeiramente, é bom deixar muito claro que é positivo a União Europeia (UE) estar priorizando a pauta ambiental neste momento. O fato é que nos últimos anos tem havido um desmonte do ordenamento jurídico-ambiental em nosso país. As unidades de conservação e as políticas indígenas estão sendo revistas, e o presidente (Jair Bolsonaro) deixou claro que não haverá novas demarcações no seu governo. Junte-se a isso o avanço sobre territórios quilombolas e povos tradicionais. Enquanto a Amazônia pega fogo, o governo quer liberar o garimpo lá, sobretudo nas terras demarcadas.

Então, quando a UE consegue condicionar o cumprimento das metas ambientais no acordo com o Mercosul, ela mostra que manterá sua lógica tradicional de negociações, que é seguida há muitas décadas. Eles não estão defendendo o meio ambiente em si, infelizmente, mas terão essa margem de manobra para aplicarem medidas protecionistas disfarçadas

Independentemente do Mercosul, vamos focar no Brasil. Como o senhor avalia que o Estado brasileiro tem conduzido as negociações, e que impactos mais profundos o acordo, caso efetivado, deverá trazer para nossa economia?

Goulart — Essas negociações já se arrastavam há 20 anos, mas a partir de 2016, quando Michel Temer chega à presidência da República, o diagnóstico oficial é que o Brasil precisa de uma nova onda de liberalização econômica. Uma liberalização, aliás, radical, que sob Bolsonaro torna-se ultra-radical. As negociações com a UE funcionam como a chamada estratégia lock-in, que obriga o país a liberalizar mais sua economia. Esse mesmo sentido tem sido aplicado nas negociações que tratam da entrada do Brasil na OCDE [Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico].

Mas o que mais me chama a atenção é que, até o momento, não há nenhum estudo de fato sério, quer seja do Ministério da Economia ou do Itamaraty, ou mesmo de entidades como a Confederação Nacional da Indústria [CNI] ou a Confederação Nacional da Agricultura [CNA], capaz de apontar rigorosamente potenciais ganhos e perdas no acordo com a UE. Há manifestações políticas de apoio, ressaltando que os detalhes técnicos ainda serão aprofundados.

Nosso agronegócio sempre foi mais ofensivo nas negociações internacionais. Mas neste momento me pergunto: o que a UE está alterando na sua política agrícola comum? Na verdade, avalio que o agronegócio resolveu apostar em ganhos a longo prazo, e optou por não estabelecer mais dificuldades nas negociações com a UE.

Mas a questão é que os europeus vão fatiar as negociações. Estão estabelecendo cotas escalonadas para os produtos mais sensíveis. E quando você põe uma lupa sobre essas cotas, percebe que não há ganhos. Podemos até exportar menos nos primeiros anos. O sensível é carne, etanol e açúcar.

Às vezes acho que, em algum momento, o próprio governo brasileiro deixará de considerar esse acordo uma real prioridade. Assim que ele foi divulgado, lembre-se que poucos dias depois o governo brasileiro engatou uma outra negociação com os Estados Unidos. Pra mim, é aí que o governo vai centrar sua energia. Porque os Estados Unidos têm mais espaço para comprar produtos semi-manufaturados e manufaturados nossos do que a UE.

Agora, por enquanto, o que há são manifestações oficiais de apoio, à despeito das muitas divergências entre chefes de Estado, causadas pela crise ambiental. O Ministério da Economia, por exemplo, valoriza a alta renda per capita na UE como mola propulsora para nossas exportações agrícolas.

Goulart — A renda per capita da Alemanha, da França, da Grã-Bretanha — que, lembremos, está prestes a sair da UE — e da Holanda, entre outros, de fato é significativa. Mas lá também tem países intermediários, como Irlanda e Portugal, e também os de patamar mais baixo, como Bulgária e Romênia. Falemos francamente, se apegar à renda per capita não ajuda muito numa análise rigorosa… Lá também tem países, como a Grécia, e muita gente em crise, a despeito da renda per capita média ser alta.

Além de comprarem muito de países com boa produção agrícola na própria UE, como a Polônia, o bloco também já tem acordos consolidados com o grupo APC, África, Pacífico e Caribe. Ou seja, a UE abre cotas para suas ex-colônias, das quais se obriga a comprar parte da produção. O mesmo se dá com outro acordo, a Convenção de Lomé, em que parte das ex-colônias entram no sistema geral de preferência.

O Brasil foi excluído do sistema geral de preferência em 2014. E a UE incluiu apenas parte desse mecanismo no acordo com o Mercosul. Em resumo, não nos iludamos: a UE não é um mercado aberto esperando pelo Brasil. Além da Polônia, compram muito da produção agrícola da República Tcheca e da Eslováquia, entre outras que fazem parte da UE, e de nações que faziam parte da antiga União Soviética. E, acima de tudo, cada vez mais a economia passa pelo fornecimento de serviços sofisticados. E aí o Brasil não tem praticamente nada pra oferecer aos europeus.

Fonte: Agência Senado


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